Título: Sanguessugas sem abafa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O "caso sanguessugas" se distingue dos demais escândalos que têm surgido nesta República, nos últimos tempos, porque não deriva de denúncia pública gerada por interesses políticos contrariados, ou por vingança de ex-sócios, ex-cúmplices ou ex-parentes, ou por depoimentos de testemunhas inesperadas. Também não adquiriu consistência pelo estardalhaço de matérias surgidas nos veículos de comunicação ou pela indiscrição deliberada de autoridades incumbidas de procedimentos investigatórios. O caso já nasceu com um cabedal robusto de indícios e provas, acumulados em trabalho minucioso da Polícia Federal, sendo que também o distingue o grande número de parlamentares federais nele envolvidos. Bastaria este último aspecto, aliás, para torná-lo objeto de enérgica cobrança, por parte da opinião pública, pois chega a estarrecer que tantos representantes do povo, detentores de legítimos mandatos parlamentares, tenham se permitido a tão vergonhosas fraudes, como as das ambulâncias superfaturadas, fornecidas às prefeituras com recursos do orçamento federal.

Fossem quais fossem os motivos do presidente do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), em julgar inconveniente a aprovação de mais um pedido de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito - sendo o principal deles a falta de disposição, tanto de parlamentares governistas como oposicionistas, de em pleno período eleitoral permanecer em Brasília para acompanhar processos contra colegas -, a verdade é que "pegou" muito mal Calheiros ter rechaçado o pedido de CPI mista encaminhado pelo deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), com número suficiente de assinaturas e objeto a ser investigado bem definido, como manda a lei, sob uma alegação formal que não passava de mera firula: a referência, no papel do requerimento, ao termo "apoiamento", quando claramente se tratava de signatários proponentes de uma CPI.

A esta altura do campeonato eleitoral, não é provável que tenha sucesso a nova tentativa de parlamentares do PV, do PSOL e do PPS, de investigar a "máfia dos sanguessugas" por meio de uma nova CPI - e parece que nem mesmo o próprio deputado Gabeira - que não se conforma em ter que tomar o cafezinho habitual da Casa com não identificados corruptos - acredita nessa possibilidade. Então, o que sobra para se tentar, na undécima hora, a higienização moral de uma das piores legislaturas já havidas na História da República, especialmente sob o aspecto ético-político? O que será possível ainda se fazer para, pelo menos, preservar da generalizada desmoralização os parlamentares dignos, honestos, que não participaram de falcatruas nem se envolveram em esquemas destinados a desviar para os próprios bolsos parcelas dos recursos gerados, a duras penas, pelos cidadãos contribuintes?

Mesmo que isso não possa ser considerado uma compensação, felizmente a sociedade brasileira está podendo contar com uma instância de cobrança responsável, representada pelo atual chefe do Ministério Público Federal, o procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, o qual, trabalhando com discrição e eficácia - já que não é dado ao deslumbre pelos holofotes, como tantos outros -, já pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a abertura de 15 inquéritos para apurar suspeitas de envolvimento de congressistas em compras fraudulentas de ambulâncias, reveladas pela Operação Sanguessuga, realizada pela Polícia Federal. Segundo assessores, o procurador já identificou indícios de participação de 15 parlamentares no esquema, abrangendo crimes como corrupção ativa e passiva, tráfico de influência e lavagem de dinheiro. Poderá ele, no entanto, pedir a abertura de novos inquéritos contra outros congressistas, à medida que surjam indícios de irregularidades que os envolvam. Sua estratégia em dividir os inquéritos - e não agrupar casos que se refiram a situações e regiões diversas - certamente trará maior agilidade aos processos, impedindo que se façam (como de hábito) as procrastinações pelo acúmulo.

Ainda há esperança, pois, de que as sanguessugas não sejam abafadas.