Título: Júri ao vivo avilta a Justiça
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/06/2006, Notas e Informações, p. A3

A decisão do juiz Alberto Anderson Filho de permitir o televisionamento ao vivo do julgamento de Suzane von Richthofen e dos irmãos Cravinhos poderá não produzir efeitos práticos - porque o STF resolveu manter a programação normal de sua emissora a cabo, a TV Justiça, que cobre as atividades do Poder Judiciário, naquele e nos dias seguintes. Salvo por alguns flashes no decorrer da sessão, a emissora se limitará a gravar o julgamento para exibi-lo depois do seu término. Restaria, em tese, a alternativa de outras emissoras serem habilitadas a captar o seu sinal e levá-lo ao ar em tempo real, como ocorre com a transmissão de sessões de CPIs.

Será uma lástima se isso ocorrer. Os que pensam de outro modo invocam dois argumentos. O primeiro, formal, é que, salvo em processos que tramitam em segredo de Justiça, manda a lei serem públicos todos os demais julgamentos. Se assim é, tanto faz que o destino dos réus no mais rumoroso caso criminal da história brasileira recente seja acompanhado pelas 80 pessoas que tiverem acesso às dependências do tribunal ou, digamos, por 80 milhões de espectadores. O segundo argumento, "político", é que a transmissão ao vivo das sessões de um Tribunal do Júri terá sentido pedagógico, ao esclarecer a população sobre os ritos judiciais. "A transmissão dá transparência, e as pessoas não ficam com a sensação de que não se fez justiça", acredita o jurista Ives Gandra Martins.

O que tais raciocínios não levam em conta são também duas questões. Uma é a imensa repercussão do crime incomum a ser julgado - o assassínio dos pais da ré, com a sua cumplicidade, segundo o inquérito que enfim a conduz à barra de um tribunal. A segunda questão é o imenso impacto da televisão para a formação das opiniões, inigualado por nenhum outro meio de comunicação de massa. A combinação desses dois fatores, que a ninguém ocorrerá negar, tenderia, de um lado, a interferir na conduta dos participantes do julgamento (juiz, jurados, acusadores, defensores, testemunhas e réus) e, de outro, a incluir na chamada civilização do espetáculo uma atividade e uma instituição que deveriam, ao contrário, ser mantidas ao largo dessa realidade antes nefasta do que civilizatória.

Tribunais de júri, ainda que não se instalem em estádios, diante de multidões, já contêm de si um forte componente teatral: promotores e advogados de defesa jogam para a arquibancada - o corpo de jurados a que precisam persuadir da culpa ou da inocência dos réus, com recursos histriônicos e palavras dirigidas às emoções dos julgadores. Contraria o bom senso, e a experiência conhecida, que a transmissão ao vivo dos procedimentos não interfira na decisão do júri e na sentença judicial, sobretudo em casos que acendem no público exacerbadas paixões. Exemplo de livro de texto foi o julgamento de 372 dias de O. J. Simpson, nos EUA. Acusado de matar a facadas a ex-mulher, o célebre esportista negro foi absolvido graças à esperteza de seus advogados.

Sabendo que o país seguia as sessões pela TV - em um circo de mídia sem precedentes -, construíram a falácia de que o processo contra o seu cliente tinha conotações racistas. Intimidado, o júri se curvou. No caso de Suzane, as pressões previsíveis seriam pela condenação. De mais a mais, é duvidoso que as pessoas que pagariam qualquer preço ao seu alcance para ver de perto o julgamento, ou largariam tudo para fazê-lo pela televisão, se movessem por um direito inerente às sociedade livres: o de entender como funciona a Justiça, na situação-limite que é a sua manifestação sobre um homicídio que estarreceu o País, pelas causas, circunstâncias e posição social dos envolvidos.

O que as motivaria, em geral, é a curiosidade mórbida, própria da condição humana, mas que a cultura de massa explora a extremos, sem cessar e com lucros extravagantes, no seu ambiente mais fecundo por excelência: a televisão. Ora, o julgamento de um homicídio exige um clima de austeridade e contenção - antítese desse gênero de mídia - para que triunfe a Justiça e não o clamor popular. Como resumiu admiravelmente ontem neste jornal o advogado Antônio Claudio Mariz de Oliveira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, "crime não é show, justiça não é entretenimento, júri não é negócio".

N. da R. - Este editorial já estava pronto quando o TJ de São Paulo proibiu a exibição ao vivo do julgamento.