Título: O perigoso mundo pós-Doha
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/07/2006, Notas e Informações, p. A3

Poderá custar muito caro o fiasco das negociações comerciais da Rodada Doha, segundo as previsões de especialistas e negociadores de todo o mundo. "Somos todos perdedores", disse o diretor-geral da OMC, o francês Pascal Lamy, ao oficializar a suspensão dos trabalhos por tempo indeterminado. Sem a perspectiva de uma nova etapa de liberalização comercial, estão criadas as condições para mais protecionismo, mais conflitos e mais confusão nos mercados globais, com perdas para todos, mas principalmente para os países em desenvolvimento.

É praticamente certa a multiplicação de conflitos, admitiram o chanceler brasileiro, Celso Amorim, e a representante de Comércio Exterior dos Estados Unidos, Susan Schwab. Essa é uma das previsões mais fáceis neste momento. Sob as normas da Rodada Uruguai, concluída em 1994, há muito espaço para o uso arbitrário de medidas protecionistas, disfarçadas de ações antidumping. Além disso, a Europa e os EUA mantêm um poderoso arsenal de subsídios fiscais e financeiros, acoplado a eficientes sistemas defensivos para todos os tipos de produtos.

O acordo de 1994 sobre agricultura nunca foi aplicado integralmente. Para conseguir seu cumprimento, o Brasil tem recorrido ao sistema de solução de controvérsias da OMC. Obteve a condenação dos subsídios ilegais dos EUA ao algodão. A decisão nunca foi seguida por Washington. Também os europeus deixaram de cumprir a determinação dos juízes da OMC, quando suas subvenções à exportação de açúcar foram condenadas.

As normas internacionais permitem a aplicação de sanções, quando as decisões dos juízes são descumpridas. Quase sempre se tenta evitar o uso de retaliações. Em geral, é mais vantajosa uma negociação adicional entre as partes.

Mas soluções dessa natureza poderão ficar mais complicadas, se os governos dos países mais fortes decidirem renegar mais abertamente a disciplina internacional.

O sistema multilateral de comércio está em xeque. A multiplicação de acordos bilaterais, regionais e inter-regionais poderá torná-lo mais débil, complicando o conjunto de regras de comércio. Novas negociações de preferências mudarão o desenho dos canais de comércio. Haverá mais discriminação entre os vários grupos que serão formados e isso dificultará a expansão do intercâmbio.

Terá cada vez menos peso a primeira das normas do comércio internacional, a regra da nação mais favorecida. Se a regra fosse aplicada em condições ideais, qualquer participante do sistema deveria estender aos demais qualquer benefício oferecido a um parceiro. Esse é um excelente motivo para o ingresso no clube da OMC. Mas o princípio é sujeito a exceções e sua eficácia continuará a diminuir com a multiplicação de acordos parciais.

Mas a tendência à fragmentação do sistema será apenas acentuada. Desde a criação da OMC, no final da Rodada Uruguai, centenas de acordos bilaterais e regionais foram celebrados em todo o mundo. Nas Américas, o México foi um dos mais ativos nesse processo, com 42 acordos concluídos. O Chile também foi eficiente na busca de associações com parceiros de todo o mundo. Concluiu, entre outros, acordos com os Estados Unidos e com a União Européia.

Os Estados Unidos também buscaram entendimentos com parceiros de todo o mundo, especialmente depois do fracasso da conferência da OMC em Cancún, em 2003. Além disso, celebraram acordos com vários países latino-americanos, quando emperraram as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

O Mercosul, cercado de países que decidiram negociar com os Estados Unidos, continua sem acordos com os parceiros mais desenvolvidos. Agora, terá de levar em conta, em qualquer negociação, os interesses políticos do governo da Venezuela, recém-admitida no bloco. Preso nessa armadilha, o Brasil é uma das economias emergentes menos preparadas para conseguir parcerias vantajosas. O fiasco da Rodada Doha é um item de primeira grandeza na coleção de fracassos da diplomacia petista. Talvez o presidente da República deva convocar os estrategistas do MST para discutir os próximos passos.