Título: Grupo libanês não é joguete da Síria e do Irã
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/07/2006, Internacional, p. A11

Ao longo das avenidas arborizadas nos subúrbios ao sul de Beirute, cartazes mostram o impetuoso líder espiritual do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ao lado dos presidentes da Síria, Bashar Assad, e do Irã, Mahmud Ahmadinejad, tendo ao fundo o cintilante Domo da Rocha. Essas imagens podem dar a impressão de que esses três avatares do poder islâmico formam uma espécie de "eixo", cuja finalidade última é arrebatar a Terra Santa de Israel.

Não surpreende, portanto, que as potências ocidentais considerem automaticamente que Damasco e Teerã são responsáveis pelas maquinações do Hezbollah. Afinal, Síria e Irã exercem uma enorme influência sobre a milícia libanesa e não apenas porque fornecem a ela centenas de milhões de dólares em ajuda econômica e militar. No entanto, é um grave exagero afirmar, como vem repetindo a Casa Branca, que o Hezbollah é um mero joguete da Síria e do Irã. E não se pode dizer que o atual conflito entre Israel e Líbano necessariamente tenha as impressões digitais de Assad e Ahmadinejad.

Nos últimos anos o Hezbollah alcançou enorme sucesso político ao se transformar de agente de regimes estrangeiros em agente da reforma interna. Conseguiu seu mandato popular no Líbano por meio de uma plataforma política centralizada unicamente na política nacional. Seus candidatos argumentam que as obrigações cívicas e um governo responsável estão acima da teologia ou da imposição da lei islâmica.

Isso se deveu em parte a uma campanha inteligente, uma vez que os libaneses formam uma das populações mais secularizadas no mundo árabe.

A verdade é que o Hezbollah nunca defendeu uma ideologia pan-nacionalista. Embora criado pelo Irã xiita e sustentado pela Síria árabe, o movimento cuidadosamente evitou quaisquer associações pan-arábicas, pan-islâmicas ou mesmo pan-xiitas. (Vale a pena observar que o Hezbollah não deu nenhuma assistência significativa, financeira, militar e mesmo espiritual para seus irmãos xiitas no Iraque).

Quando a Síria foi obrigada a sair do Líbano, depois do assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri, o Hezbollah mobilizou-se em apoio ao antigo aliado e patrão. Mas o mais notável na mobilização não foram os sentimentos pró-Síria do grupo e sim sua descarada exibição de nacionalismo libanês. Os 500 mil partidários do Hezbollah que inundaram Beirute em março de 2005 ostentaram as cores da bandeira do Líbano e não da Síria. E desde a saída da Síria o Hezbollah continua a defender uma plataforma dedicada a proteger o território libanês, preservar a identidade libanesa e trabalhar com todas as linhas sectárias e religiosas para promover a unidade libanesa, formando até uma parceria com o líder cristão do Movimento Patriótico Livre, Michel Aun.

A questão é que, apesar de suas táticas terroristas, o Hezbollah conseguiu se reformular como partido político legitimamente sancionado. Seria improvável que se arriscasse a perder apoio popular aparentando favorecer seus benfeitores estrangeiros, em detrimento de seus componentes domésticos.

Por isso são equivocadas as afirmações do governo Bush de que as investidas do Hezbollah no norte de Israel foram feitas por ordem da Síria, que pretende semear a discórdia na região, ou do Irã, que quer desviar a atenção internacional do seu contestado programa nuclear.

Qualquer política, mesmo a islâmica, é local: não é preciso observar mais além da dinâmica interna do Líbano para entender por que o Hezbollah cruzou de forma tão irrefletida a fronteira e atacou as tropas israelenses. A libertação do Líbano da ocupação israelense e da intromissão síria tornou obsoleta a razão de ser do Hezbollah como milícia armada responsável pela proteção das fronteiras.

Com os apelos cada vez mais intensos, dentro do Líbano e entre a comunidade internacional, para o desarmamento do grupo, determinado pela Resolução 1.559 das Nações Unidas, a ala militar do Hezbollah sentiu-se obrigada a mostrar sua importância permanente como baluarte contra a agressão israelense. As novas investidas de Israel contra Gaza deram ao grupo a oportunidade perfeita para provar isso.

Pode-se argumentar que essa missão tola do Hezbollah foi um erro tático e só prejudicará o apoio público que o grupo tem no Líbano e no mundo árabe. Na verdade, as críticas ao Hezbollah que partem de capitais árabes indicam que o movimento exagerou grosseiramente.

Contudo, o grupo provavelmente sairá deste conflito mais forte do que antes. Se existe uma constante nesta região instável, é a de que se deve geralmente esperar que Israel responda com força exagerada às ameaças a sua soberania. O bombardeio de aeroportos, pontes, casas, portos, torres de TV, usinas elétricas e até uma fábrica de laticínios no Líbano varreu da memória coletiva do povo libanês quem começou esta confusão e mais uma vez a raiva concentrou-se no Israel agressivo. Nasrallah não podia ter criado um roteiro melhor.

Isso tudo não quer dizer que Síria e Irã não tenham um papel importante no conflito. Tanto Assad como Ahmadinejad ganham muito com a escalada da violência na região. Mas é muita negligência do Ocidente afirmar que Síria e Irã começaram esta guerra e, portanto, seria sua responsabilidade acabar com o banho de sangue. Nesse ínterim, muitas vidas inocentes foram perdidas, dos dois lados, e a infra-estrutura civil do Líbano mais uma vez ficou reduzida a frangalhos.

Esta não é uma guerra em nome de terceiros, pelo menos ainda não. Mas sem uma intervenção internacional e a imposição de um cessar-fogo imediato, o que começou como um conflito regional entre Israel e Líbano pode rapidamente transformar-se numa guerra incontrolável e sangrenta, com conseqüências devastadoras. E que beneficiará os extremistas bem além da Síria e do Irã.

* Reza Aslan, americano-iraniano, é autor do livro 'No God but God: The Origins, Evolution and Future of Islam'. Escreveu este artigo para 'Global Viewpoint'