Título: 'É o Exército que deve defender o país, não o Hezbollah'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/07/2006, Internacional, p. A11

Nayla Moawad é uma política conhecida no Líbano. A deputada cristã da coalizão 14 de Março, o grupo liderado pela família sunita Hariri, é a ministra dos Assuntos Sociais e a viúva de René Moawad, o ex-presidente assassinado pelos sírios no final dos anos 80. Nayla é também uma das vozes mais críticas ao Hezbollah desde que a guerra começou. A ministra, uma senhora de gestos e roupas finos, recebeu o Estado no seu gabinete no ministério na quarta-feira à tarde e só perdeu um pouco a calma na hora de tirar uma foto. Notou que a imagem do presidente Émile Lahoud seria enquadrada atrás de sua mesa, levantou, pegou a moldura, jogou no chão e disse: "Escreva aí. Lahoud é um espião sírio." Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Dentro do Líbano, quem dá apoio político ao Hezbollah?

O Hezbollah é muito apoiado por Síria e Irã. O governo iraniano envia uma quantidade enorme de dinheiro. O regime sírio dá todo o apoio logístico, assim como os aliados da Síria dentro do Líbano. O general Michel Aun (um líder histórico cristão que agora está aliado com os xiitas) fez recentemente um acordo com o Hezbollah que acabou criando um problema de soberania com o nosso grupo, o que é muito pior do que um problema político.

Por quê?

Pelo acordo, Aun concordou que o Hezbollah tinha o direito de defender o território libanês. Temos lutado para não dar ao Hezbollah o direito de defender o território porque estamos convencidos de que esse é um papel do Exército. Aceitamos que a resistência libanesa, que agora se resume ao Hezbollah, teria o direito de fazer frente a qualquer ocupação em qualquer lugar do território, mas não concordamos que o grupo seja o responsável pela defesa. Esse deve ser o papel apenas do Exército libanês e das instituições do Estado.

Antes do começo desta guerra, havia muitos políticos no Líbano pedindo o desarmamento do Hezbollah...

É preciso mais uma vez colocar isso num contexto histórico. Em 2000, o Hezbollah liberou o sul do país da ocupação israelense. Naquela época, estávamos todos dando apoio ao grupo. Não aceitávamos que chamassem o grupo de milícia, mas sim de resistência à ocupação. Após essa libertação, continuamos sob dominação síria. Depois da saída das tropas sírias, em abril, voltamos a defender a aplicação de um acordo.

Qual acordo?

Esse acordo, apresentado no final dos anos 80, prevê que o Exército e as forças de segurança devem ter poder sobre cada centímetro do país. Diz que somente o governo pode decidir entre a paz e a guerra.

Deixa claro que Israel é nosso inimigo, mas que temos um armistício com eles. O Líbano precisa defender seus próprios interesses. Não pode ser o defensor de todas as causas árabes.

O que a sra. quer dizer exatamente?

Outro dia, Hassan Nasrallah (o líder do Hezbollah) disse que estava lutando não apenas pelo Líbano, mas por toda a causa árabe, a causa islâmica. Nós somos contra isso. Nossas raízes são árabes, temos orgulho disso, mas não devemos ser os defensores de todos os árabes. As Colinas do Golan estão ocupadas por Israel e você não encontra nem uma faca síria lá.

Por que o Hezbollah foi convidado para fazer parte do governo?

Tivemos uma eleição parlamentar e formamos o primeiro gabinete que busca conquistar a soberania plena. Convidamos representantes do Hezbollah para fazer parte do Ministério. Fizemos isso porque imaginamos que, com o grupo no Executivo, depois de anos de forte presença do Hezbollah no Parlamento, daríamos segurança a eles de que estávamos unidos. Queríamos passar a mensagem de que são um grupo importante dentro do Líbano, que apoiamos a resistência, mas que era o momento de todos juntos reconstruirmos a nação e o Estado. É a única maneira de garantir o futuro. Durante muito tempo, nos anos 60 e 70, acreditamos que a melhor maneira de garantir a segurança do país era cada vilarejo e cada comunidade ter o seu próprio exército. Vimos que era impossível. Estávamos com esperança de aplicar a resolução da ONU convencendo o Hezbollah de que era melhor eles entregarem as armas para o Exército libanês.

O Hezbollah tinha o direito de começar uma guerra contra Israel?

O governo teve uma posição bem clara. Dissemos que não sabíamos, não aprovamos e não a adotamos. Depois que os deputados do Hezbollah foram convidados para formar o governo e os melhores ministérios foram dados a representantes dos xiitas, o presidente do Parlamento teve uma grande idéia. Começou uma discussão muito franca sobre os valores democráticos e as instituições...

O Hezbollah errou ao começar esta guerra?

Totalmente. E nisso sou muito clara. Estamos convencidos de que a decisão não foi tomada no Líbano. Foi em Damasco e Teerã.

A sra. acha que o desarmamento será possível depois da guerra, contando que o Hezbollah ainda detenha um grande arsenal quando ela acabar?

É preciso dizer que a reação israelense à ação (do Hezbollah de matar e capturar soldados israelenses) foi terrivelmente desproporcional. Hoje vemos um desastre humano, vemos o nosso país ser destruído, nosso povo sendo ferido e morto. Queremos corredores humanitários de forma urgente. Está claro que, quando tivermos um cessar-fogo, teremos de falar ainda mais abertamente sobre o que aconteceu. As forças do 14 de Março (o grupo liderado pela família Hariri) se recusam a voltar ao status quo anterior à guerra. Não podemos ficar reféns de uma organização que decide sozinha fazer uma operação como essa. Tínhamos o exemplo da Faixa de Gaza. Quando, antes da ação do Hezbollah, grupos palestinos capturaram um soldado israelense, a reação também foi totalmente desproporcional. Achamos que a ação em Gaza foi um ensaio para o que viria a acontecer no Líbano mais tarde.

Seu marido foi morto pelos sírios logo após assumir a presidência nos anos 80. A sra. acha que os políticos têm medo de falar contra o Hezbollah por temerem alguma retaliação?

Há muito tempo, recebemos ameaças de ações terroristas por parte dos sírios. Tivemos nossos mártires, nossas vítimas, nossos mortos.Tenho plena consciência de que estamos sendo ameaçados. Mas queremos defender nosso país, falar dos assuntos cruciais para a formação do nosso Estado soberano e estamos prontos para sacrificar qualquer coisa, até nossas vidas. Não vamos desistir disso. Todos precisam pensar primeiro no Líbano.