Título: Sustentação da pobreza
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Durante três dias, estiveram reunidas em Brasília, por iniciativa do governo, as 1.500 pessoas das quais provavelmente depende mais do que de quaisquer outras o bom andamento do Bolsa-Família, o programa de transferência de renda que chega a 11,6 milhões dos mais pobres domicílios brasileiros, segundo dados do Ministério de Desenvolvimento Social. Elas são os coordenadores dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), que mobilizam em 1.600 municípios 6 mil funcionários diretamente envolvidos com essa e outras operações das políticas federais chamadas de combate à pobreza.

A reportagem sobre o encontro, no Estado de ontem, reitera um fato sabido e lança luz sobre um aspecto menos conhecido das ações assistenciais do Planalto. O fato sabido é que o Bolsa-Família não é a única arma reeleitoral do presidente Lula, mas nenhuma outra é tão poderosa. Diga-se desde logo que não se está diante de um caso de compra de votos, à maneira da praga que historicamente degradou a política nacional e parece caminhar aos poucos para a extinção. As equipes do Bolsa-Família que mantêm contato direto ou próximo com os seus beneficiários não pedem votos para o presidente - até porque entre elas há lulistas e antilulistas.

Mas o efeito, registrado a cada pesquisa, é o mesmo. O repórter Paulo Moreira Leite ouviu de uma coordenadora do Cras em Ilhéus, na Bahia, Marta Lucas de Carvalho, uma síntese irretocável de como as coisas funcionam na vida real. "Você pode dizer que está dando um direito, e não prestando um favor, mas as pessoas vão associar os benefícios ao Lula. Ele é que deu essa alavancada." Naturalmente, raros serão os destinatários do Bolsa-Família detentores de título eleitoral que deixarão de utilizá-lo para retribuir o que percebem ser um favor - algo que o governo poderia fazer ou deixar de fazer.

Já o aspecto menos conhecido da prática social do governo, evidenciado no encontro de Brasília, é a engrenagem posta em movimento para fazer o dinheiro do Bolsa-Família chegar ao que os tecnocratas chamam público-alvo. Instalados nos bairros pobres e compostos por uma assistente social, um psicólogo e um técnico, os Cras são 2.244 (ante 400 em 2003). O governo paga o custo - R$ 4.500 mensais cada - e as prefeituras conveniadas entram com a sede e escolhem as equipes. "Pega mal para um prefeito ficar de fora", explica uma coordenadora pernambucana. "O povo sabe o que acontece na cidade vizinha e cobra."

O avanço em relação ao velho assistencialismo clientelista é da noite para o dia. Mas a que vem todo esse progresso? O termo recorrente é combate à pobreza. Mas a expressão correta é sustentação da pobreza. O Bolsa-Família e assemelhados sem dúvida tornam a pobreza um tanto mais suportável, quando não salvam literalmente vidas pobres. Ajudam a diminuir a desigualdade de renda, mas não modificam a aflitiva condição dos pobres. Faça o que faça pela qualidade de vida dos seus atendidos, o verdadeiro Exército da Salvação mobilizado pelo governo não tem como lhes dar os meios para deixarem de ser o que são.

Esse calcanhar-de-aquiles das políticas sociais voltadas antes para o urgente (amenizar as carências das populações em situação de pobreza extrema) do que para o importante (capacitar tais populações a se tornar cada vez menos pobres) transpareceu de um debate, na reunião de Brasília, entre o economista Ricardo Paes de Barros, do Ipea, respeitado especialista na matéria, e a professora Beatriz Paiva, da UFSC. Ela quer aumentar o valor das bolsas e rejeita, como se fosse "discriminação contra os pobres", a idéia de condicionar o benefício à contrapartida dos beneficiários de manter os filhos na escola.

Para Paes de Barros, a experiência mundial não deixa dúvidas. "Os dados", afirma, "demonstram que as crianças são mantidas nas escolas com mais freqüência pelas famílias que devem fazer isso como contrapartida para receber um benefício." Beatriz retruca que "não faz sentido obrigar uma família a se alimentar pior e aumentar as suas privações por não conseguir manter um filho na escola". Essa mentalidade é que faz com que os programas de renda mínima, estreitamente concebidos - com ou sem objetivos eleitorais -, apenas perpetuem a pobreza. Outra seria a perspectiva se, mesmo com o Bolsa-Família, a prioridade social absoluta do governo fosse a educação de base, cuja qualidade é uma lástima.