Título: O Irã e as armas nucleares
Autor: José Goldemberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Um dos temas que dominam o noticiário internacional nos dias de hoje é a decisão do governo iraniano de "enriquecer" urânio para uso em reatores nucleares que produzem eletricidade. "Enriquecer" urânio significa submetê-lo a um processo técnico que aumenta a proporção dos átomos capazes de alimentar as reações nucleares em máquinas que se chamam "ultracentrífugas". No urânio natural, que se encontra na natureza, apenas sete em cada mil átomos de urânio se prestam como combustível para os reatores nucleares. Para uso em reatores nucleares é preciso aumentar esse número para 40 ou 50.

A tecnologia necessária para isso é considerada como tendo grande valor estratégico, pois, uma vez dominada completamente, permite que se produza a matéria-prima para bombas atômicas. Para isso é necessário aumentar o número desses átomos para mais de 200 em cada 1.000 átomos de urânio. Temos aqui um caso típico de uma tecnologia "dual" que pode ser usada para fins pacíficos, que são os reatores nucleares para produção de eletricidade, como os de Angra dos Reis; ou para fins militares, em bombas como as que arrasaram Hiroshima e Nagasaki em 1945. Com urânio enriquecido não há uma linha rígida que separe usos pacíficos e militares e a decisão entre um e outro é política. Por essa razão existem tratados internacionais destinados a impedir que aplicações pacíficas sejam desviadas para fins militares.

O Brasil conquistou uma posição privilegiada nessas questões porque conseguiu enriquecer urânio graças ao competente trabalho dos nossos técnicos e eliminou suspeitas de que o tenha feito com a intenção de produzir armas nucleares, por meio de um conjunto de acordos e tratados internacionais, primeiro, com a Argentina e, depois, com a Agência Internacional de Energia Atômica, que realiza inspeções periódicas nas instalações de inúmeros países para certificar que o uso de materiais nucleares se destina exclusivamente a fins não-militares.

Uma das conseqüências desta credibilidade do País é o acesso livre à tecnologia e a materiais nucleares nessa área. Ao ratificar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), o Brasil abriu mão de parte da sua soberania, abrindo mão igualmente da possibilidade de desenvolver armas nucleares, mas que é compensada pelas vantagens do acesso à tecnologia nuclear para fins pacíficos (incluindo reatores nucleares). Soberania nunca é absoluta e o fato de que um país pode fazer alguma coisa não significa necessariamente que a faça. Por exemplo, todos os países têm o direito de desenvolver uma indústria aeronáutica, mas poucos decidiram que vale a pena fazê-lo. Além disso, não é a posse de armas nucleares que torna um país uma grande potência, mas sim o seu desenvolvimento econômico e social. O Paquistão tem armas nucleares, mas nem por isso deixou de ser um país com enormes problemas sociais e com um atraso enorme a corrigir.

O Irã, por sua vez, está testando os limites impostos pelo TNP à sua soberania e com isso criou um enorme problema com a Agência Internacional de Energia Atômica que pode levar à aplicação de sanções políticas e econômicas e até à intervenção militar por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) ou mesmo à ação unilateral dos Estados Unidos, como ocorreu no Iraque.

Apesar de ser parte do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o Irã procurou obter clandestinamente a tecnologia de enriquecimento do Paquistão, durante muitos anos ignorando a fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica. Com isso o Irã alimentou as suspeitas de que pretenderia, de fato, desenvolver artefatos nucleares, apesar de declarações em contrário, o que viola dispositivos do daquele tratado.

Nos termos do TNP, contudo, é "direito inalienável" dos países signatários desenvolver toda a tecnologia nuclear - inclusive o enriquecimento -, desde que para fins pacíficos. Como se assegurar de que os fins são pacíficos, é aí que está o problema, e os Estados Unidos não aceitam que o Irã realize este enriquecimento justamente por causa das atividades clandestinas que empreendeu no passado, que não o recomendam como um parceiro confiável.

Provavelmente um acordo acabará sendo feito e os países da Europa têm oferecido vários incentivos ao Irã para que abra mão de enriquecimento do urânio. Por essa razão tem sido levantada no Brasil a idéia de que abrimos mão facilmente demais da nossa soberania sem exigir compensações apropriadas, como as que estão sendo oferecidas ao Irã.

Este argumento não é correto: o País preservou o direito de enriquecer urânio e, portanto, de garantir no futuro o abastecimento deste combustível se não for possível comprá-lo no exterior, como é feito agora para os reatores nucleares de Angra dos Reis. Além disso, não sofreu sanções econômicas de nenhuma espécie, como estava ocorrendo há 15 anos, antes de o presidente Fernando Collor de Mello encerrar os programas nucleares paralelos - ou "clandestinos", segundo alguns -, que estavam sendo realizados ainda de forma incipiente. A Argentina estava seguindo o mesmo caminho e o acordo firmado pelos dois países permitiu "desnuclearizar" o Cone Sul da América Latina. A criação da Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC) dissipou desconfianças mútuas entre os dois países e permitiu mais tarde a adesão de ambos ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

Este é o caminho que o Irã deveria trilhar, afastando os custos e sacrifícios que sanções econômicas impuseram ao país e o risco de uma confrontação militar com os Estados Unidos.

José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo