Título: Do principal não se fala
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Será uma surpresa e tanto se, no discurso à convenção do PT do próximo sábado que formalizará a sua candidatura à reeleição, o presidente Lula fizer alguma referência, ainda que velada, à principal questão com que terá de se defrontar em um eventual segundo mandato - a política do gasto público. Será também uma surpresa se a oposição se ocupar substantivamente do assunto, quando a campanha começar para valer, com o período de propaganda na mídia eletrônica. Governo, ou pelo menos a sua banda lúcida, e oposição, ou pelo menos os seus quadros mais bem informados, sabem que não é possível perpetuar o arrocho fiscal nos seus termos atuais, frágeis e de má qualidade.

Sabem igualmente que a busca do santo graal de uma política fiscal apta a assegurar o cumprimento dos compromissos financeiros do País e ao mesmo tempo permitir uma retomada robusta dos investimentos estatais em infra-estrutura passa inexoravelmente pelo preparo de uma pílula amérrima para boa parte do eleitorado - razão por que o tema é tabu na campanha. Trata-se, ainda e sempre, de aliviar as contas nacionais do fardo cada vez mais esmagador representado pelo déficit da Previdência, da ordem de R$ 44 bilhões este ano. Os dispêndios com os benefícios do funcionalismo federal até que foram contidos: representam 2,2% do PIB, ante 2,4% em 2001. Já os gastos com o INSS aumentaram de 6,3% para 7,2% no mesmo período.

Não há hipótese de ao menos reduzir o ritmo de crescimento desse inchaço, apenas com um "choque de gestão" em um sistema a caminho do colapso. Por obviamente imprescindível que seja, a racionalização e a moralização do INSS não darão conta do recado sem uma nova reforma previdenciária, com o aumento da idade mínima para a aposentadoria dos trabalhadores do setor privado e a dissociação entre os reajustes do salário mínimo e os dos benefícios do INSS. Um terço do total dos benefícios desembolsados acusa o efeito dos aumentos reais do mínimo.

Nada disso é propriamente novo - a crise da Previdência é uma tragédia de há muito anunciada. O que complica muito o quadro é a identificação das causas profundas do sufoco das finanças públicas, do que faz parte o desequilíbrio previdenciário. Estudo conduzido pelos economistas Mansueto Almeida, Fabio Giambiagi e Samuel Pessoa, do Ipea, sugere estar equivocada a percepção corrente segundo a qual a obesidade do Estado é a maior responsável por seus graves males financeiros.

Segundo eles, não são as despesas com pessoal nem com o custeio da máquina as principais causas do descalabro. Os gastos com os servidores da ativa se estabilizaram na última década e meia, quando comparados com o PIB. O problema é que a série histórica utilizada pelos economistas não reflete a política salarial do governo Lula. Houve aumento do número de servidores contratados - mais de 80 mil no Executivo -, reestruturação de carreiras e reajustes e vantagens concedidos ao Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Em 2005, os gastos com pessoal foram de R$ 93,2 bilhões. A previsão para 2006, de R$ 104,3 bilhões, já foi reajustada para R$ 105 bilhões. Nos anos recentes, entre 2001 e 2005, o montante destinado ao sustento da administração - despesas discricionárias - caiu de 2,4% do PIB para 2%. Para os economistas do Ipea, o que rebentou as costuras foram os gastos sociais, que saltaram de 1,8% do PIB para 2,7% - e também os gastos previdenciários e com pessoal, dizemos nós. Nos gastos sociais, a parte do leão - 80%, ou 0,7 ponto porcentual do PIB - ficou com os programas de transferências de renda, sobretudo o Bolsa-Família e as mensalidades pagas a idosos e deficientes. Politicamente, trata-se de uma péssima notícia. Porque mais difícil do que mexer nas despesas com o funcionalismo e o custeio do setor público será tocar no que Lula considera a sua jóia da coroa e o seu passaporte para um segundo período do governo.

Não é de imaginar que o PMDB, provável partido hegemônico na legislatura a se iniciar em 2007 - e tratado desde já pelo presidente como o esteio de seu hipotético mandato renovado, com Ministérios obtidos em regime de porteira fechada -, tenha qualquer inclinação por assumir ou respaldar iniciativas de reforma do perfil do gasto público, ainda mais pelo lado social. Se algo une os diversos PMDBs que a sigla abriga é o seu DNA gastador, "desenvolvimentista" e fiscalmente irresponsável. Por que haveriam de mudar a Previdência e promover políticas sociais realistas?