Título: Inclusão social com porteira fechada
Autor: Antônio Márcio Buainain
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/07/2006, Economia & Negócios, p. B2

Nos últimos dez anos o Brasil realizou o maior programa de redistribuição de terras em período de paz e normalidade institucional que se conhece no mundo. Tendo como objetivo promover a agricultura familiar sustentável e reduzir a pobreza, aproximadamente 1 milhão de famílias recebeu um lote de terra e alguma ajuda para instalação - uma parte recebeu crédito e se beneficiou de investimentos em infra-estrutura física realizada nos assentamentos. Teoricamente, ao final de um período, as famílias se emancipariam, receberiam o título definitivo da terra e tocariam a vida - difícil -, como qualquer produtor rural, sem tutela direta dos governos. Ainda que se registrem exceções notáveis de sucesso, não se tem conhecimento de assentamentos emancipados e muito menos que um número significativo de assentados tenha encontrado a porta de saída da situação de pobreza e da falta de perspectivas em relação ao futuro. A maioria continua dependendo das ações do Incra e do governo federal para sobreviver. O resultado de programas sociais que só têm porta de entrada é previsível: os recursos são cada vez mais insuficientes para atender simultaneamente os que entram e os que já estão - os problemas e distorções se vão agravando e isto justifica a manutenção da tutela e a não emancipação. É o caldo de cultura apropriado para manter e desenvolver, institucionalmente, práticas políticas clientelistas de fazer inveja aos melhores coronéis que povoaram o País de Norte a Sul. Essa distorção está se reproduzindo, em escala muito maior, na forma que a administração Lula vem conduzindo o Bolsa-Família.

Programas de transferência de renda não são invenção recente, como quer fazer crer a propaganda oficial. Podemos lembrar a experiência pioneira de Campinas, em 1993; ou no Distrito Federal, em 1995; ou os vários programas introduzidos pelo federal a partir de 1995 (o Benefício da Prestação Continuada, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Renda Mensal Vitalícia). No segundo mandato de Fernando Henrique, a rede de proteção social adquiriu concepção mais consistente de promoção de desenvolvimento humano e o acesso aos vários programas (Auxílio Gás, Bolsa Escola Federal, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e Bolsa Alimentação) passaram a ser instrumentos da política educacional e de saúde. A mudança, positiva, ficou no meio do caminho, já que a implementação do cadastro único não foi concluída, os vários programas mantiveram a lógica e dinâmica própria de cada ministério e não chegaram a ser complementados com ações diretas para criar oportunidades de saída a curto e médio prazo do círculo da pobreza.

Foram, portanto, várias iniciativas que produziram aprendizado suficiente para permitir à atual administração federal dar um passo adiante importante e unificar, no Bolsa-Família, os quatro programas existentes. Mas o progresso parou aí. As contrapartidas exigidas para participar do programa foram na prática relaxadas, em parte por causa da concepção dominante no governo de que não eram relevantes, e em parte por causa do afã de elevar rapidamente o número de beneficiários e compensar a confusão instaurada pelo Fome Zero em 2003 e parte de 2004; em muitos municípios a concessão do benefício virou ato político e o que era direito do pobre foi transformado em favor do governo; ainda que estudos não revelem problemas graves de foco, a imprensa não cessa de apontar distorções. O mais grave, no entanto, é que o programa não aponta nenhuma porta de saída e que o governo continua celebrando a entrada, e não a emancipação.

Temos 11 milhões de famílias recebendo bolsas, resultado a ser celebrado. Não está em jogo o Bolsa-Família, como levianamente se difunde entre os mais pobres para influenciar o jogo eleitoral. O programa veio para ficar e deve ser despartidarizado e implementado com política de Estado. A questão que se coloca se refere a seu aperfeiçoamento. O atual governo esteve mais preocupado em registrar os pobres e mantê-los na pobreza. Caberá ao próximo criar portas de saída da pobreza e substituir paulatinamente as bolsas pela criação de oportunidades para a inserção das famílias pobres seja no mercado de trabalho, seja como pequenos empreendedores. A sociedade precisa definir se quer manter os pobres vivendo de bolsa ou construir alternativas para a superação da pobreza.

Antônio Márcio Buainain é professor do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: buainain@eco.unicamp.br