Título: Dr. Alkimim e os desafios fiscais
Autor: Joaquim Levy
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Há 50 anos era ministro da Fazenda o dr. José Maria Alkimim. Sua administração se notabilizou pela busca da segurança fiscal e monetária, não obstante o aumento do salário dos servidores militares e civis decidido independentemente pelo Congresso. O ministro sempre lembraria o nível relativamente baixo da inflação no período e sua luta contra o gozo de privilégios fiscais e aduaneiros por indivíduos com poder econômico.

A habilidade política do ministro era lendária, apesar de a estima de seus correligionários não ser unânime, por causa de algumas de suas ações no campo da política. Conta-se que, alcançado por um demandante nas ainda hoje cavernosas garagens do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro, ele rapidamente defletiu o pedido. Ao auxiliar impressionado pela cortesia e eficácia da negativa, disse que "o orçamento não obriga despesas, apenas as autoriza".

Até recentemente, o dr. Alkimim entrevia-me nas reuniões do Conselho Monetário Nacional, a que, junto a seus pares do período republicano, assiste em efígie. Sua imagem me traz a consciência de como avanços na política fiscal parecem sempre tentativos, principalmente se lembrados sem análise mais cuidadosa.

Deu-se grande publicidade há poucos dias, por exemplo, a que o ajuste fiscal de 2003-2005 teria sido alcançado principalmente pelo aumento da arrecadação e redução dos gastos com servidores públicos. Claro que a alternativa a esse sucesso teria sido o menor crescimento dos benefícios do INSS - opção que poucos explicitam. Numa avaliação mais profunda, também mereceriam consideração os esforços para a melhora da qualidade do investimento público - em geral, através do Projeto Piloto de Investimento -, os fortes cortes na despesa corrente em 2003 e a lembrança de que o aumento de arrecadação em 2005 deveu muito ao substancial crescimento do lucro das empresas já em 2004 e à conseqüente produtividade do IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Estudos da Fundação Getúlio Vargas também indicam que a classe média foi grande ganhadora no crescimento econômico em 2004 - o que impulsionou o Imposto de Renda da Pessoa Física. Assim se explica boa parte do aumento da arrecadação verificada, apesar das desonerações tributárias promovidas pelo governo e da estabilidade da Cofins e da CPMF. Menor evasão e a ausência de renegociações de dívidas com o erário também não seriam estranhas ao resultado fiscal.

O aumento do superávit primário se deu apesar do reordenamento de passivos associado a despesas como a capitalização da Emgea (passivo do BNH), do saneamento do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste - R$ 6 bilhões de perdas reconhecidas em 2001, cujo pagamento foi organizado em 2004 - e do envio de dívidas agrícolas inadimplentes (período pré-Real) para a Dívida Ativa da União, onde sua cobrança passou a ser efetiva. Essas despesas, que não têm impacto na demanda agregada, explicam por que o superávit primário não chegou a 5% do PIB em 2005.

A redução dos gastos globais com servidores como proporção do PIB, concomitante com a melhora da remuneração das categorias funcionais mais baixas, teve impacto redistributivo positivo. É bem verdade que ela talvez concorra para o que se convenciona chamar de "deterioração" das carreiras que ganham na faixa de R$ 7 mil a R$ 18 mil e dos inativos. Por outro lado, o aumento marginal das despesas com a Bolsa-Família foi de menos de dois milésimos do PIB.

No que toca à Previdência Social, há uma importante mudança em curso, centrada na melhora do controle da informação e do atendimento ao usuário. Suas partes mais visíveis são o censo de milhões de pessoas e iniciativas como o teleatendimento. A transferência da Previdência Social do âmbito dos ministérios "políticos" para os "técnicos", como Fazenda e Planejamento, é um grande passo que oxalá pressagie uma reforma equilibrada e fiscalmente responsável, como augurado pelo atual ministro.

Assim, a idéia de um grande impulso fiscal não encontra especial apoio nas contas de 2005, emanando talvez mais da percepção de estagnação da economia no ano passado e de incentivos que essa atonia possa ter gerado para 2006. Por razões ainda não identificadas, mas associadas por alguns à apreciação do câmbio, o PIB praticamente não cresceu ao longo de 2005. É interessante que, nesse quadro, aumentos de despesa como proporção do PIB têm um sentido bastante diferente do que ocorre em países emergentes cujas economias tenham crescido na faixa dos 4% a 6 %.

Em relação ao câmbio, há ainda dois aspectos a serem lembrados. Primeiro, o Relatório de Inflação de Março demonstra que a redução da inflação em 2005 se deveu quase que exclusivamente à apreciação cambial. Segundo, num mundo em que derivativos têm proeminência, a simples análise dos fluxos de capital nem sempre é exaustiva - já que a distribuição de riscos nesses mercados está incorporada ao preço dos ativos subjacentes. Posições tomadas no exterior, em geral, à sombra do diferencial da taxa de juros doméstica, podem ter reflexos no câmbio através, entre outros, dos mercados futuros. Destarte, o setor financeiro pode transformar legitimamente os amplos fluxos reais da conta corrente em suporte para um fluxo virtual de capital com impacto adicional no câmbio (a exportação brasileira cresceu em linha com a de muitos países, mas o câmbio se apreciou mais). Sabe-se bem que os bancos internacionais até recentemente sugeriam a seus clientes privilegiar posições sintéticas na dívida pública como forma de se exporem ao mercado doméstico brasileiro. Nesse sentido, aliás, a eficácia de se criarem contrafluxos para regular o câmbio (em geral, com a compra de títulos longos da dívida externa pública, se fosse o caso) merece ser ponderada.

Enfim, se para alguns é difícil imaginar a repetição, hoje, de fenômenos ou episódios mais anedóticos do pessedismo mineiro, clareza e firmeza por parte dos condutores da política econômica continuam sendo moeda muito valiosa.

Joaquim Levy, representante do Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), foi secretário do Tesouro