Título: Em busca de brechas na lei
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Seria hilariante se não fosse um retrato dos tristes costumes políticos nacionais. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) parece não ter mãos a medir para responder a tempo e hora - a uma semana do início oficial da campanha para o pleito de outubro - à chusma de consultas que lhe fazem os políticos sobre os limites entre o permitido e o proibido na temporada de caça ao voto. Mais do que o número de indagações, é o conteúdo da grande maioria delas que deixa transparecer o que de fato as origina - não uma preocupação nórdica, por assim dizer, com o irrepreensível cumprimento da legislação eleitoral, mas a esperteza de descobrir quais os seus interstícios pelos quais poderão se esgueirar os transgressores das regras do jogo, fingindo obedecê-las.

Em abril passado, o Congresso aprovou - e o presidente Lula sancionou no mês seguinte - a chamada minirreforma eleitoral, que mereceria ser chamada Lei Delúbio por seu intuito de estreitar a margem para o vale-tudo no caminho das urnas. Sob o impacto do mensalão, que não foi sinônimo de uso de caixa 2, como o PT quis fazer crer, mas um delito dele indissociável, os legisladores buscaram dois objetivos: baratear o custo das campanhas e impor aos partidos requisitos mais severos em matéria de entradas e saídas de dinheiro para os seus candidatos e respectivas prestações de contas. Numa ponta, eliminaram-se os showmícios e os outdoors, entre outras práticas. Na outra, por exemplo, tornaram-se os candidatos co-responsáveis pelos atos de seus tesoureiros e vedou-se a circulação de dinheiro vivo.

Na regulamentação da lei, o TSE, fiel a uma velha tradição brasileira, mergulhou no detalhismo, como se a probabilidade de obediência às leis fosse tão maior quanto mais minuciosas as suas provisões - haja vista para a adiposa Constituição de 1988. Naturalmente, o cuidado obsessivo com a microgestão das normas legais produz um efeito distinto: anima os interessados em driblá-las a forçar definições judiciais com boas chances de que lhes sejam favoráveis. Assim, proibida a distribuição de brindes, como camisetas, eis que os políticos batem às portas do TSE para saber se elas podem ser vendidas. Se a resposta for positiva, nada os impedirá de vendê-las a R$ 1 a dúzia. E os santinhos, trevos de quatro folhas, calendários, marcadores de livros - estes podem ser dados?

Eis um tema de alta importância para a chamada lisura do pleito. Outra dúvida, esta do candidato do PC do B ao governo do Distrito Federal, deputado Agnelo Queiroz, leva a perguntar o que beira mais o patético: o gosto dos legisladores por medidas saneadoras não raro cosméticas, a propensão dos juízes a se munir de lupas para interpretar o texto legal, ou a peculiar mentalidade dos políticos? O parlamentar quer que o TSE diga se a lei autoriza a distribuição de biobrindes, como raízes, folhas e sementes de plantas do Norte e Nordeste, presumivelmente para os eleitores originários dessas regiões. Momentosa questão também a dirimir é se as equipes dos candidatos podem ou não usar uniformes com os seus nomes, números e as caras.

Astutamente, há quem procure outra resposta. Abolidos os showmícios, será que não se poderiam montar eventos com a presença de cantores, desde que não cantem? Ou, sem eles, mas com gravações aos cuidados de DJs, além de trios elétricos e telões com videoclipes? Algumas graves decisões a Justiça Eleitoral já tomou: adesivos, flâmulas e bandeirolas foram liberadas, assim como bonecos fixos e placas de propaganda de no máximo 4 metros quadrados. Mas aí vem a pergunta: poderia um candidato emendar tantas de tais placas a ponto de o conjunto ficar do tamanho dos proibidos outdoors? A bem da verdade, nem tudo é essa ridicularia atroz. O problema da propaganda institucional do governo é substantivo. O TSE a vetou, salvo em casos de urgência e calamidade, e a Advocacia-Geral da União recorreu.

Já o que os brasileiros querem saber é se a Justiça está suficientemente estruturada e motivada para garantir que a minirreforma eleitoral produza efeitos à altura de suas boas intenções no que realmente interessa - o banimento da dinheirama que sempre corre por baixo dos panos nas campanhas. Em 2002, para citar um exemplo que entrou para história, o PT, via Marcos Valério, pagou a Duda Mendonça, em contas no exterior, R$ 10,5 milhões. Coisas do gênero não se repetirão impunemente este ano?