Título: Um conto mal contado
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2006, Nacional, p. A6

A demissão do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, é daquelas histórias tão mal contadas, tão cheias de mentidos e desmentidos, que acabam dando margem a desconfianças talvez até infundadas, mas plenas de sentido.

A começar pela alegação oficial para a saída - "motivo de ordem pessoal" - divulgada pelo governo e negada pelo próprio demissionário que, segundo consta e para todos os efeitos, tomou a iniciativa de sair.

No desmentido, em que negou também a existência de "componente político-eleitoral" em sua, digamos, decisão, Roberto Rodrigues tampouco explica a razão pela qual, afinal de contas, decidiu sair. Se é que decidiu mesmo e não foi "decidido".

À bancada ruralista do Congresso, Rodrigues justificou que já tinha cumprido seu dever e alcançado os objetivos expostos em seu discurso de posse em janeiro de 2003.

Mas como - perguntaram-se os parlamentares dos quais se fez porta-voz o deputado Ronaldo Caiado - aceitar a versão do "trabalho encerrado" se o setor agrícola vive sua pior crise em muitos anos?

Crise que, segundo palavras do próprio Roberto Rodrigues, ditas no dia 29 de maio, em jantar durante o qual manifestou particular irritação com o descaso do governo, nunca se viu igual nos últimos 40 anos.

Resumia assim o cenário da desolação: "O preço caiu, os custos subiram, a produção diminuiu e a dívida aumentou." Na avaliação dele, os efeitos da crise não prejudicariam a campanha da reeleição, pois só seriam sentidos diretamente pelo consumidor por volta de 2008, quando, na opinião de Roberto Rodrigues, os preços dos alimentos serão atingidos pela inflação.

Apesar da insatisfação já transbordante, na ocasião o ministro afirmou categoricamente que não pedia demissão porque temia que, com sua saída, as coisas ficassem ainda piores.

Aliás, em matéria de dever cumprido, avaliou que seu maior feito à frente da pasta talvez tivesse sido evitar desatinos maiores que a sistemática restrição de recursos e a indiferença a alertas sobre problemas como, por exemplo, a ocorrência da febre aftosa por causa da desatenção com o setor de vigilância sanitária.

Na opinião do então ainda ministro, isso tudo se devia a um misto de ignorância com ideologia que identifica o setor rural como conservador, aproveitador e opressor.

A despeito de toda essa visão do conjunto em que se encontrava inserido, Roberto Rodrigues não pretendia sair. Ao contrário. Queria completar seus quatro anos, mas já avisara ao presidente Luiz Inácio da Silva que, em caso de reeleição, ele não pretendia voltar ao ministério.

Rodrigues reconhecia que o patronato da Agricultura estava todo contra a reeleição de Lula, mas acha que o presidente sairia vencedor na eleição, "porque se os patrões são contra, os empregados, a maioria, são a favor".

Ora, se já havia contabilizado os prejuízos para si inclusive como liderança de classe, se já tinha se programado para ficar até o fim do governo, se as brigas com a área econômica haviam se amenizado com a saída de Antonio Palocci e a entrada de Guido Mantega no Ministério da Fazenda, se nenhum fato novo ocorreu (ou ocorreu) de lá para cá, por que mesmo Roberto Rodrigues haveria de se demitir agora, por que não administrar a situação por mais uns poucos meses?

Fazê-lo a dois dias de acabar o prazo legal para o presidente da República assinar nomeações não ajudou a asséptica versão de que o ministro estaria saindo por "razões pessoais".

Quando ele toma a iniciativa de desmentir essa versão e ainda revela que havia combinado com o presidente comunicar a saída só na sexta-feira e foi surpreendido pela divulgação antecipada, vem à mente a velha máxima de Vitorino Freire: jabuti não sobe em árvore; se está na árvore, alguém pôs o bicho lá.

O mesmo acontece com a notícia: não tem perna, não caminha só; alguém a conduz ao destino pretendido.

E, no caso, a condução da passageira deu-se exatamente a tempo de serem feitas nomeações na pasta vaga. Se fosse observada a data combinada de sexta-feira, dia 30, não sobraria Diário Oficial no fim do prazo legal de três meses antes da eleição.

A história oficial, por mais boa vontade que se tenha, não fecha, é cheia de brechas sem explicação e por isso mesmo presta-se a toda sorte de especulações.

A mais lógica delas indica que Roberto Rodrigues serviu enquanto emprestou ao governo seu prestígio num setor vital.

Quando deixou de servir, inclusive pela antecipação da posição de não mais avalizar o desacerto oficial na Agricultura em eventual segundo mandato de Lula, foi alvejado pelo mesmo tipo de artefato que cozinhou, fritou e carbonizou ministros ao longo dos últimos três anos e meio, sempre com requintes de desmoralização.

Diante da premência de consolidar a demissão a tempo sabe-se lá do quê (mas nas próximas horas isso já ficará claro), tornou-se o fato consumado sem nem se dar ao ministro que tantos sacrifícios fez o benefício do direito a um aviso antecipado.