Título: Bolívia vota Constituinte e autonomia
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2006, Internacional, p. A12

Nem mesmo os bolivianos têm clareza sobre os dois processos eleitorais - separados, mas complementares - que o país promove no domingo. Os eleitores vão às urnas para dizer sim ou não à concessão de autonomia para os nove departamentos (Estados) que formam o país. E também elegerão 255 deputados para a Assembléia Constituinte, encarregada de redigir uma nova Carta capaz de reduzir a crônica tensão política da Bolívia, que teve cinco presidentes desde outubro de 2003.

Autonomia é a palavra de ordem e velha aspiração dos líderes de Santa Cruz de la Sierra, a região mais desenvolvida do país. As últimas pesquisas indicam que quase 80% dos crucenhos devem votar pelo "sim" no referendo sobre autonomia. Mas o grau e o alcance dessa autonomia só serão definidos pela nova Constituição.

O governo do presidente Evo Morales tem adotado posições ambíguas sobre a concessão de autonomia para Santa Cruz. O Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales, se diz a favor da concessão de alguma autonomia para os crucenhos, mas não nos termos propostos pelo Comitê Cívico Pró-Santa Cruz - que os governistas qualificam de "representantes da direita camba (como são designados os habitantes da planície do leste boliviano)". O principal ponto de discórdia está na arrecadação e distribuição dos impostos.

Santa Cruz - onde se localizam as principais jazidas de gás natural, indústrias e campos da agroindústria - arrecada quase metade dos impostos do país, que é repassada ao governo central, em La Paz. Dessa receita, menos de um terço retorna ao departamento, por meio de pagamento de funcionários, obras e serviços.

A discrepância entre o que se arrecada e o que se usufrui causa ressentimentos entre os cambas - descendentes de europeus. Um ressentimento que, invariavelmente, desemboca em racismo contra os collas (a população do Altiplano majoritariamente indígena). O sentimento geral dos crucenhos é o de que eles trabalham para que La Paz, com seu quase meio milhão de funcionários públicos, gaste.

Movimentos de raiz eminentemente separatista, como o Nação Camba, cresceram depois que os seguidos bloqueios de estradas promovidos por líderes indígenas paralisaram sistematicamente as atividades econômicas do país a partir de 2003. E se aprofundaram com a eleição de Evo, em dezembro, e a nacionalização dos recursos de gás e petróleo, decretada em 1º de maio.

O porta-voz do Comitê Pró-Santa Cruz, Daniel Castro, assegurou ao Estado que a proposta da entidade nada tem a ver com separatismo. "Queremos algo parecido com o que existe nos Estados do Brasil, por exemplo", afirma.

"Nos outros departamentos, muita gente está pensando que serão necessários vistos em seu passaporte para vir a Santa Cruz, caso o 'sim' vença", diz Martín Obregón, professor de Ciências Políticas da Universidade Livre de Santa Cruz. "Todo o processo tanto do referendo quanto da Constituinte foi precipitado, mal esclarecido e mal conduzido. O referendo de autonomia deveria ser convocado pela próxima Constituição. O eleitor deveria saber exatamente que grau de independência teriam os departamentos."

Embalado por uma popularidade que oscila entre 75% e 80%, Evo deve obter esmagadora maioria na Constituinte, o que poderia reduzir as pretensões dos autonomistas de Santa Cruz ao nível mínimo, ainda que o referendo obrigue a assembléia a redigir um capítulo sobre o tema. Há ainda dúvidas sobre a jurisdição do resultado do referendo. A atual Constituição não contempla consultas regionais.

Por isso, alguns juristas interpretam que o debate sobre autonomia só irá à Assembléia Constituinte se o "sim" obtiver mais de 50% dos votos em todo o país. Para o Comitê Pró-Santa Cruz, a nova Constituição terá de estabelecer regras de autonomia para todos os departamentos onde o "sim" tiver maioria, independentemente do resultado nacional.