Título: Mesmo em áreas protegidas índios vivem ameaçados
Autor: Ricardo Brandt
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/07/2006, Nacional, p. A10

O Brasil tem pelo menos 61 áreas indígenas reconhecidas por lei, mas que continuam como foco de algum tipo de invasão, por fazendeiros, grileiros, garimpeiros e madeireiros. São aproximadamente 65 mil índios que não podem usufruir plenamente suas terras - apesar do reconhecimento oficial - e que vivem em clima de tensão permanente em razão de conflitos com os invasores.

Há casos até de assentamentos criados pelo próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nas reservas e de pequenas cidades que surgiram por causa da grande concentração de invasores - como é o caso dos índios bororos, da terra indígena de Jarudóri, em Mato Grosso.

O número corresponde a 16% do total de áreas já registradas ou homologadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) - 382 ao todo. O registro e a homologação são as duas últimas etapas do processo oficial de reconhecimento.

O levantamento foi realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a pedido do Estado, e ainda não considera os casos de áreas reconhecidas que são alvo de invasões pontuais de pescadores, caçadores e outros que entram para usurpar os recursos naturais.

Espalhadas por 17 Estados, as 61 áreas passaram por um detalhado e longo estudo antropológico antes de serem reconhecidas, conforme determina o decreto 1.775/96, o que legalmente daria aos índios o direito de uso irrestrito dessas terras.

Ao invés disso, transformaram-se nos principais focos de conflito fundiário no País, com conseqüências desastrosas para as comunidades indígenas. "O maior número de conflitos de terras está em áreas ou homologadas ou em processo de demarcação, onde o governo não retirou os invasores", afirma o vice-presidente do Cimi, Saulo Feitosa.

Os casos de assassinato envolvendo esses conflitos são crescentes, os índices de mortalidade infantil, altíssimos, o álcool e as drogas viraram um novo mal entre os jovens índios, além dos freqüentes casos de suicídios. "São áreas que ficaram tão apertadas para o convívio dos índios e de seus invasores que na maioria elas assumem características de periferia urbana", afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, que coordenou um estudo recente divulgado pelo Cimi sobre violência contra os índios.

Os números corroboram as afirmações. Num levantamento divulgado no mês passado foram registrados 287 assassinatos de índios, entre 1995 e 2005, em decorrência dos conflitos pela terra - número considerado alto pelos especialistas.

Sobram casos para exemplificar o problema. Os povos macuxi, uapixana, ingaricó e taurepangue, por exemplo, lutaram mais de 30 anos para demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, e mesmo depois da terra homologada, em abril de 2005, ainda sofrem ataques violentos. Foram registrados tiros, seqüestros e destruição de casas e plantações.

Um dos casos mais emblemáticos, que demonstram o elevado grau de tensão nesses territórios aconteceu em Rondônia, onde foram assassinados 29 garimpeiros na terra indígena Roosevelt, em abril de 2004. Os cintas-largas reagiram com violência aos anos de invasão dos garimpeiros.

Para o antropólogo Marco Paulo Schettino, da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, um dos maiores problemas é que, "quando essas terras foram reconhecidas, essas ocupações estavam consolidadas de diferentes maneiras". Em boa parte dos casos foi o próprio Estado que titulou essas áreas, a partir dos anos 30, e passou a comercializá-las. "É a chamada invasão legal, porque eles (o Estado) foram lá, retiraram os índios e destinaram as terras para os fazendeiros", explica o vice-presidente do Cimi.

Funai não é única responsável, diz coordenador O coordenador-geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Izanoel Sodré, afirmou que o órgão não pode ser apontado como único responsável pelo problema das invasões em terras indígenas.

"É fácil colocar tudo em cima da Funai e não perceber que é necessário uma ação integrada. A Funai não pode multar madeireiros, é o Ibama que faz isso. A Funai também não pode prender ninguém, é a Polícia Federal que faz."

O representante da Funai questiona também as afirmações de que as áreas reconhecidas são os principais focos de conflitos. "A convivência entre os índios e os invasores existia antes do reconhecimento", diz Sodré.

Segundo ele, a Funai combate a invasão das áreas, "mas talvez o embate não atinja níveis desejados". "Quando as terras foram regularizadas, já estavam ocupadas."