Título: O Brasil no acostamento
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/07/2006, Economia & Negócios, p. B2

O Brasil será quase certamente o maior perdedor, se a Rodada Doha de negociações comerciais não for concluída neste ano ou, no máximo, até o começo do próximo. Os países desenvolvidos e a maior parte dos emergentes conseguirão intensificar o comércio por outros meios, multiplicando os acordos bilaterais, regionais e inter-regionais, como já vêm fazendo há alguns anos. A China, já favorecida por enormes vantagens competitivas, poderá aprofundar os compromissos com os dinâmicos parceiros da área do Pacífico, além de continuar explorando oportunidades no mundo rico e nos mercados em desenvolvimento. Se não perder o pragmatismo exibido até agora, a Índia também poderá ajustar-se à nova situação, batalhando por espaço no mercado mundial e buscando formas compensadoras de integração. Mantida a atual diplomacia comercial, a situação brasileira será muito menos confortável.

O Brasil não tem acordo relevante com nenhum dos principais mercados. As negociações Mercosul-União Européia estão emperradas há mais de um ano. Isso não se deve apenas ao protecionismo agrícola europeu. O bloco sul-americano tem dificuldades para formular ofertas, porque as suas maiores economias não se entendem quanto à política industrial.

A discussão da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) empacou há mais tempo. Já estava praticamente liquidada em 2003, por decisão brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva confessou, num famoso ato falho, em 2005, haver tirado a Alca da pauta dois anos antes. Os americanos contribuíram para o impasse, a partir de 2004. Não se pode atribuir-lhes a responsabilidade principal.

O abandono da Alca foi conseqüência da adoção, pelo governo petista, de um terceiro-mundismo requentado, alimentado pela fantasia de uma grande aliança contra o Norte. Foi este o sentido da prioridade atribuída pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à integração latino-americana.

Todos os movimentos nessa direção deram resultados mínimos, porque os parceiros estavam interessados em negócios, não numa grande mobilização contra o mundo rico. Buscavam acordos com os países desenvolvidos. A Argentina do presidente Néstor Kirchner foi uma exceção, mas agiu segundo projetos próprios, impondo seu protecionismo ao Brasil e explorando as ilusões de liderança do presidente Lula.

Este não parece haver notado seu isolamento nem quando as derrotas se acumularam rapidamente.O Brasil não teve apoio dos parceiros ¿estratégicos¿ na eleição do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio. Foi vencido na escolha do presidente do Banco Interamericano do Desenvolvimento. Fracassou na campanha por um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Menosprezando ou ignorando as mudanças no mundo, o governo brasileiro insistiu nas apostas equivocadas. Reconheceu a China como economia de mercado, numa decisão cômica, e nada ganhou em troca. Os chineses mantiveram o comércio com o Brasil rigorosamente de acordo com seus interesses e com seu projeto de projeção global. Não cederam mais do que cederiam no desenvolvimento normal de relações comerciais.

Na Rússia, considerada pelo governo brasileiro um país ¿geograficamente do Norte e geopoliticamente do Sul¿, o presidente Lula fez um discurso engraçadíssimo. Sem notar o grotesco da situação, dissertou, na presença de um ex-funcionário da KGB, o presidente Putin, sobre a cautela necessária a quem se relaciona com as malvadas potências capitalistas.

Se Lula for reeleito, o Brasil estará condenado, quase certamente, a mais quatro anos de estagnação nesse atoleiro diplomático. A indústria brasileira não é competitiva para se envolver em acordos de livre comércio, segundo o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, citado pelo Valor. Melhor, portanto, limitar seus pactos comerciais à vizinhança. É uma infindável briga com os fatos.

Como sabe quem dá alguma atenção ao mundo, vários segmentos da indústria brasileira são competitivos e o demonstram diariamente. Se não fazem mais, é porque o governo é incompetente não só na política industrial, muito alardeada e nunca executada, mas também na diplomacia, incapaz de negociar acordos com os mercados mais importantes. Essa competitividade, é bom lembrar, cresceu muito desde a abertura da economia, nos anos 90. O atraso da indústria é superável com os estímulos adequados. O do terceiro-mundismo não tem jeito.

*Rolf Kuntz é jornalista