Título: 'Terceirização' questionada
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2006, Notas e Informações, p. A3

Criticada por abrir uma brecha pela qual Estados e municípios poderão contratar novos empréstimos à margem dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e por resoluções anteriores, a Resolução nº 33 do Senado Federal, que permite a governos estaduais e prefeituras a cessão da cobrança da dívida ativa para instituições financeiras, agora está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). A Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape)entrou com ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no STF contra a resolução, argumentando que a delegação ao setor privado da cobrança da dívida ativa do setor público contraria a Constituição e outros dispositivos legais.

A resolução atendia a uma antiga reivindicação dos prefeitos. Desde 2003 tramitava proposta do senador Sérgio Cabral que permitia a transferência da cobrança da dívida dos municípios a bancos particulares. A proposta inicial limitava a antecipação da receita para as prefeituras a 30% do valor de face da dívida a ser cobrada pelos bancos. Além disso, a operação era garantida por parcela do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) a que o município tem direito, no valor equivalente ao recebido como antecipação de receita.

Não por acaso num ano eleitoral, os senadores, para angariar as simpatias de governadores e prefeitos, não apenas decidiram rapidamente sobre um assunto que até há pouco não avançava na Casa, como ampliaram as vantagens da Resolução nº 33 estendendo aos governos estaduais a possibilidade de transferência da dívida para instituições financeiras e elevando para 100% do seu valor de face o total que o ente público pode obter como antecipação da receita orçamentária, eliminando ainda a exigência do comprometimento do FPM (no caso dos municípios) como garantia da operação.

Tinha todos os motivos, por isso, o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, para comemorar a decisão do Senado, que está sendo chamada de "terceirização da dívida pública". Segundo Ziulkoski, os bancos dispõem de instrumentos mais eficazes do que os utilizados pela maioria das prefeituras para cobrar dívidas. Além disso, a utilização da dívida como lastro para novas operações de crédito aliviaria o caixa das prefeituras cuja capacidade de tomar empréstimos atingiu o limite permitido pela LRF e pelo Senado.

O risco de rompimento desse limite, em decorrência da Resolução nº 33 é, entretanto, elevado. Boa parte dos valores lançados como dívida ativa consolidada de Estados e municípios, e que podem ser cedidos para instituições financeiras privadas, talvez não seja cobrável, porque o devedor encerrou as atividades ou por outro motivo. Tendo a prefeitura obtido antecipadamente os recursos referentes a esses valores, como fará para pagar sua dívida?

A essa questão, a Adin ajuizada pela Anape acrescenta outras, de natureza jurídica. Um dos argumentos dos procuradores é que o Art. 132 da Constituição atribui às procuradorias estaduais a representação judicial e a prestação de consultoria jurídica dos Estados. A resolução, ao transferir a cobrança da dívida ativa para os bancos, transfere também atribuições constitucionais das procuradorias. É importante destacar que a perda de certas atribuições pode resultar em perda de alguma forma de remuneração dos procuradores, o que os torna diretamente interessados na ação.

Outros argumentos não se baseiam em interesses específicos dos procuradores, mas nos de toda a sociedade. A transferência da cobrança da dívida ativa cria a possibilidade de quebra do sigilo fiscal do contribuinte que tem dívidas junto ao Estado ou ao município. O risco da operação, de outro lado, é inteiramente do setor público, uma vez que, não sendo possível cobrar a dívida, o valor antecipado pelo banco como receita terá de ser devolvido nas condições negociadas.

A Adin questiona, ainda, a competência do Senado para regular esse tema por meio de resolução e também a falta da exigência de licitação para a escolha do banco que assumirá a cobrança da dívida. Seus argumentos são fortes.