Título: A nova carreira diplomática
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2006, Notas e Informações, p. A3
No início de seu governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou a sua política externa como o marco zero de uma nova era, uma ruptura com um passado de dependência e subordinação. Ele faria uma verdadeira revolução: "democratizaria" as relações internacionais e mudaria radicalmente a "geografia comercial" do mundo. Três anos e meio depois, essa política externa - inspirada e executada pelo trio formado pelo chanceler Celso Amorim, pelo secretário-geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e pelo assessor especial Marco Aurélio Garcia - é um rosário de fiascos.
A sua iniciativa política mais importante - a candidatura a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU - esvaziou-se melancolicamente, na comprovação de que Lula superestimara o seu papel de liderança regional - outra meta de sua política externa. As "alianças estratégicas" com a Rússia, a China e a Índia não mudaram a feição econômica do planeta, principalmente porque os parceiros estavam menos interessados em ideologizar suas políticas externas do que em fazer bons negócios com os EUA e a União Européia capitalistas. Também as candidaturas à direção da OMC, à secretaria-geral da Cepal e à presidência do BID fracassaram constrangedoramente. A inoportunidade da cúpula com os países árabes foi sentida por todos, menos pelo Itamaraty. O projeto de fazer da América do Sul um espaço único é obra de ficção. O Mercosul é hoje uma esgarçada colcha de retalhos. Bem-sucedida foi a iniciativa de solapar as negociações para a criação da Alca, com o que o Brasil abriu espaço para que alguns países vizinhos fechassem acordos de livre-comércio com os EUA.
Agora, pouco faltando para o fim do governo, o presidente Lula baixou medida provisória reestruturando as carreiras do Itamaraty. Trata-se de um projeto acalentado há muito pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães para vincular a progressão na carreira diplomática à especialização em países subdesenvolvidos. Os serviços diplomáticos de países do porte do Brasil concentram os seus quadros nos países-chave para seus interesses políticos e comerciais. O Itamaraty, a partir de agora, fará essa concentração na periferia do sistema internacional. Não faltam críticos que atribuem essa inversão de prioridades à intenção de aparelhar ideologicamente os quadros do serviço diplomático. E, de fato, é a esse resultado que parece conduzir o novo mecanismo de promoções, de extraordinária singeleza.
Em primeiro lugar, diminui-se de quatro para três anos o tempo mínimo (o interstício) que cada diplomata precisa permanecer em uma posição hierárquica para ser promovido para o cargo imediatamente superior. Depois, conta-se em dobro o tempo de serviço em postos do grupo C - países em desenvolvimento da América Latina, África e Ásia - e em triplo o serviço nos países do grupo D - países mais pobres e com estrutura precária ou de risco.
Como o quadro do serviço exterior acaba de passar de 997 diplomatas para 1.397, aumentado para guarnecer embaixadas e consulados criados principalmente em países subdesenvolvidos, não é difícil antecipar o que ocorrerá. Os diplomatas que servirem nos postos menos importantes, em relação aos reais interesses nacionais, terão carreiras meteóricas, enquanto aqueles que servirem nos países mais avançados - aqueles que realmente importam, tanto do ponto de vista político como do comercial - serão preteridos. E certas promoções deixarão de ser uma questão de mérito, mas de afinidade com a vocação terceiro-mundista da atual cúpula itamaratiana. Isso fica ainda mais visível quando se considera que os conselheiros e secretários que forem removidos para a Secretaria de Estado só poderão receber novo posto no exterior se a sua permanência em Brasília for de um ano, se serviu antes em postos dos grupos C ou D, dois anos, se retornou de posto do grupo B, e de quatro anos, se veio de posto do grupo A. Ou seja, haverá castigo certo para o diplomata que servir nos países industrializados.
Se isso não bastasse, as férias extraordinárias a que têm direito os embaixadores serão usadas para um "estágio de atualização" - ou seja, torna-se legalmente obrigatória a leitura dos livros que o secretário-geral tem impingido a seus subordinados, com fins óbvios de doutrinação terceiro-mundista.