Título: A política agrícola que falta
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/09/2006, Notas e Informações, p. A3

A agricultura brasileira provou nos últimos 10 anos que é capaz de modernizar-se, crescer e competir mundialmente sem depender de uma enxurrada de subsídios. É uma das menos subsidiadas do mundo, como já foi verificado pela OMC e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas isso não significa que possa progredir, ou mesmo conservar as conquistas, sem seguro, sem crédito adequado e sem sistema de sustentação de preços. A crise atual mostra que é urgente remontar a política agrícola, não para repetir padrões superados, mas para aproveitar as melhores lições da fase anterior.

Segundo um trabalho recém-divulgado pelo BNDES, o crédito rural diminuiu de R$ 81,4 bilhões para R$ 40,4 bilhões, em valores corrigidos pela inflação, entre 1986 e 2004. Nesse período, o PIB do setor rural cresceu em média 3,6% ao ano, enquanto o PIB total aumentou ao ritmo anual de apenas 2,1%.

Em 1991, o volume do crédito ao setor havia quase retornado ao nível de 1969. Oscilou, voltou a cair e em 1997 representou apenas 18,5% do total concedido em 1986. Recuperou-se a partir daí, mas continuou muito longe dos valores dos anos 80. Apesar disso, o crescimento da agricultura foi quase ininterrupto.

No início dos anos 90 a crise fiscal manifestou-se com toda a força e a mudança da política foi inevitável. Mas isso não impediu o crescimento do setor e os ganhos de produtividade observados nos últimos 15 anos ou pouco mais. A explicação não é difícil. O crédito generoso da fase anterior propiciou uma grande farra financeira. Muitos financiamentos foram desviados para aplicações especulativas. Nada mais normal, quando a inflação dispara e os juros são negativos. Em outras palavras: podia-se produzir muito mais com muito menos crédito, bastando, para isso, aplicar o dinheiro corretamente.

No final dos anos 80, alguns segmentos da agropecuária já se haviam modernizado, graças a novas tecnologias fornecidas por instituições nacionais de pesquisa. Nos anos seguintes a modernização continuou, apoiada pelo BNDES.

Em 1986 o Tesouro forneceu 64,9% do crédito rural. Em 1995 sua participação diminuiu para 19,7%. Chegou a 1,5% em 1997 e ficou em 3,8% em 2004. Outras fontes ganharam importância e em 2004 o BNDES concedeu 11,4% dos empréstimos. A acomodação do sistema de financiamento foi lenta e penosa. Com a inflação reduzida, o custo dos financiamentos, afetado pela Taxa Referencial de Juros (TR), levou muitos produtores à inadimplência. As dívidas foram renegociadas várias vezes, beneficiando não só produtores sérios, mas também especuladores e caloteiros.

O desmonte do velho sistema foi positivo. Os produtores passaram a depender muito mais do mercado. Ganharam importância as vendas antecipadas a indústrias. Mas nunca se organizou um novo regime de financiamento e de sustentação de preços. Além disso, perdeu-se um bom componente da velha política - a intervenção oportuna quando surgem dificuldades importantes.

Essa incapacidade tornou-se dramática nos últimos anos, quando os agricultores ficaram sujeitos a perdas causadas pela seca. Perdeu-se a noção de prioridade e o ajuste fiscal foi executado sem discriminação, negando-se à agricultura o apoio necessário. Até a defesa sanitária foi abandonada, com sérias perdas para o País.

O Ministério da Agricultura começa a planejar a reestruturação da política setorial. O Banco do Brasil deverá financiar operações de hedge, para defesa contra oscilações de preços. Será um passo para a modernização da política. Mas nem todos os produtores estão preparados para participar do sistema. A agricultura continuará a depender de uma presença mais ativa e mais vigilante do governo para se reaprumar e crescer com segurança. Recriar a política agrícola será um desafio para o novo governo.

Uma nota final: segundo os autores do estudo, uma nova categoria de verdadeiros empresários permitiu o crescimento da agricultura na fase de crédito mais curto. Faltou acrescentar que esses empresários têm sido tratados como inimigos por boa parte do governo. Também isso explica os prejuízos dos últimos dois anos.