Título: Esquerda rouba a cena
Autor: Patrick J. McDonnell
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/07/2006, Economia & Negócios, p. B3

Rachado pelas disputas internas o bloco comercial sul-americano, Mercosul, esperava projetar um novo vigor e unidade, ao receber na sexta-feira a Venezuela como novo membro do grupo, e enaltecer a participação do líder cubano, Fidel Castro.

A presença de Fidel, Hugo Chávez e Evo Morales, da Bolívia, os três líderes de esquerda mais francos e diretos da América Latina, sacudiu o normalmente solene encontro de cúpula do Mercosul, realizado em Córdoba, Argentina, cidade a cerca de 750 quilômetros de Buenos Aires.

"Muitas pessoas não sabiam que eu viria", disse Fidel aos seus colegas, cuja participação provocou grande agitação antes da reunião.

"De fato, nem eu mesmo sabia", acrescentou.

Sexta-feira foi a primeira reunião da qual a Venezuela participou como membro pleno, juntando-se a Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai no Mercosul, o Mercado Comum do Sul.

O grupo foi criado há 15 anos com o objetivo de concorrer com os Estados Unidos e a União Européia, porém as divisões internas e o colapso da economia argentina em 2001-2002 retardaram os avanços.

Os presidentes dos cinco países membros manifestaram esperança de que o bloco agora consiga um novo vigor, especialmente com a entrada da Venezuela e suas enormes reservas energéticas.

O presidente Néstor Kirchner, da Argentina, cujo país vem registrando um crescimento econômico firme nos últimos anos, qualificou a entrada da Venezuela como um "momento histórico".

O presidente venezuelano prometeu que o Mercosul não vai se retrair na luta contra as desigualdades sociais, a pobreza e o desemprego.

"Entramos em uma nova etapa dentro do Mercosul", disse Chávez, para quem seus esforços para integrar as reservas de petróleo e gás do continente são vitais para a independência econômica da região.

A presença de Fidel Castro roubou a cena na Argentina, onde os jornais vinham questionando há dias se o líder cubano aceitaria o convite dos países membros do Mercosul. Na sexta-feira, ele tirou seu uniforme verde-oliva tradicional e trocou-o por um conservador terno cinza e gravata vermelha.

Cartazes por toda a cidade alardearam a participação de Fidel, Chávez e Evo no encontro. O líder cubano não desapontou e, usando seu traje regular depois da reunião, discursou durante uma manifestação "antiimperialismo" para dezenas de milhares de pessoas na universidade estadual.

Evo esteve presente no encontro de cúpula porque a Bolívia, como o Chile, é um país associado do Mercosul, embora já esteja pensando numa adesão plena ao bloco. A presidente do Chile, Michelle Bachelet, também participou da cúpula.

A presença de Fidel, Chávez e Evo na reunião ressalta o que parece ser uma tendência nitidamente à esquerda no novo Mercosul.

Quatro dos presidentes de países membros do grupo são de centro-esquerda, dos quais três, Kirchner, Luis Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Tabaré Vázquez, do Uruguai, são considerados moderados, mantendo laços estreitos com os Estados Unidos.

Para os analistas, não se pode saber ainda se a chegada de Chávez ao bloco prenuncia um estágio mais abertamente político e ativista do Mercosul.

Alguns líderes demonstram claramente uma certa cautela quanto a transformar o grupo econômico em uma tribuna política. Mesmo Fidel, Chávez e Evo parecem ter abrandado sua costumeira retórica antiamericana, interessados em apresentar uma frente unida.

Fidel, ao discursar para os presidentes do Mercosul, referiu-se às tentativas contra sua vida, apoiadas pelos Estados Unidos, e ao boicote econômico à sua ilha, mas a maior parte do tempo falou orgulhosamente do trabalho dos médicos e professores cubanos na luta contra as doenças e o analfabetismo na América Latina, África e em outros lugares.

Os apertos de mão e promessas de solidariedade entre os membros do Mercosul não conseguiram ocultar completamente as divisões dentro do bloco.

Surgiram rumores de que o Uruguai estaria buscando um acordo de livre comércio separado com os Estados Unidos, e o presidente paraguaio Nicanor Duarte ameaçou publicamente sair do Mercosul a menos que seu país tenha um maior acesso aos mercados brasileiro e argentino.

O presidente Lula, que assumiu na sexta-feira a presidência temporária do Mercosul, salientou a cooperação entre os membros. Falou de uma nova geração de líderes latino-americanos no grupo.

"Muitos ainda não perceberam que mudamos o perfil político da nossa América e estamos mudando o perfil social", afirmou.

*Patrick J. McDonnell escreveu este artigo para o 'Los Angeles Times'