Título: 'Os dois lados têm o direito de usar a força na região'
Autor: Ahmad Khalidi
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/07/2006, Internacional, p. A16

Muito se falou nos últimos dias - na cúpula do Grupo dos Oito (G-8) e em outras partes - do direito de Israel de retaliar contra a captura de seus soldados, ou os ataques a seus soldados em seu território soberano. Alguns, como os funcionários americanos, parecem acreditar que Israel tem carta branca para contra-atacar seus inimigos custe o que custar. E mesmo os que parecem dispostos a reconhecer que pode haver um problema nisso tendem a equacioná-lo em termos de "uso desproporcional da força" por Israel, e não a questionar seu direito básico de empreender uma ação militar.

Mas o que está em jogo aqui não é questão de proporcionalidade ou autodefesa, mas de simetria e equivalência. Israel reivindica o direito do uso exclusivo da força como um instrumento de política e punição, e tenta negar um direito similar a qualquer outro agente, seja ele um Estado ou não. Ele também tem sido muito bem-sucedido em retratar seu "direito à autodefesa" como fora de questão, enquanto nega o mesmo a outros. E a comunidade internacional está endossando a posição de Israel em ambas as considerações.

Do ponto de vista árabe, isso não pode estar certo. Não há nenhuma razão no mundo para Israel poder penetrar em solo soberano árabe e ocupar, destruir, seqüestrar e eliminar os que considera inimigos - de novo, com impunidade e sem limites - enquanto o lado árabe não pode fazer o mesmo. E se os Estados árabes são incapazes ou não estão dispostos a fazê-lo, então a tarefa deve recair nos que podem.

É importante considerar que tanto no caso da operação do Hamas, que levou à invasão da Faixa de Gaza, como no ataque do Hezbollah, que originou os bombardeios ao Líbano, os alvos foram as Forças Armadas regulares de Israel, e não seus civis. É difícil perceber como isso pode ser posto sob a rubrica de "terrorismo" e não de uma derrota tática direta da muito exaltada máquina militar de Israel; derrota que Israel parece relutar em reconhecer. Parte disso tem a ver com o paradoxo do poder: quanto mais forte se torna o Exército israelense, mais suscetível e vulnerável ele fica ao menor revés. A perda de um único tanque, a captura de um soldado, ou danos causados num navio de guerra têm um efeito multiplicador negativo: o poder "dissuasor" de Israel é prejudicado de maneira desproporcional ao ato em si. Assim, a retaliação de Israel é, em parte, uma questão de restaurar sua capacidade de dissuasão, em parte pura vingança, e, em parte, uma tentativa de compelir seus adversários a fazer o que ele deseja.

Mas tem mais uma coisa em jogo: o medo de Israel de reconhecer qualquer forma de equivalência entre os dois lados. E é precisamente isso que parece dar a sustentação moral e psicológica para o presente ataque de Israel à Faixa de Gaza e ao Líbano - o sentimento de que encontrou um páreo em audácia, tática e ação militar "limpa" de num adversário que pode até mesmo ter aprendido uma ou outra coisa com o próprio Israel, e pode ser capaz de aprender ainda mais no futuro.

Evidentemente, não tem havido nada de "limpo" na ação militar israelense nas muitas décadas de conflito na Palestina e no Líbano. A desconsideração deliberada de Israel pela vida civil nos últimos dias não é nova nem atípica. Para os que se queixam de violações da soberania israelense pelo Hezbollah e o Hamas, seria bom lembrar as dezenas de milhares de violações israelenses da soberania libanesa desde o fim dos anos 60, os ataques aéreos maciços em meados dos anos 70 e início dos 80, as invasões e ocupação da capital, Beirute, de 1978 e 1982, os centenas de milhares de refugiados, os 28 anos de zona-tampão e força auxiliar estabelecidos no sul do Líbano, os assassinatos, carros-bomba, e massacres, e, finalmente, as violações contínuas de solo, espaço aéreo e águas territoriais libaneses e a detenção de prisioneiros libaneses, mesmo depois da retirada de Israel em 2000.

Não será preciso relembrar aqui toda a gama de violações de Israel à "soberania" palestina, não sendo a menor delas sua recente recusa a aceitar a escolha eleitoral soberana do povo palestino. A execução extraterritorial e extrajudicial de líderes e ativistas palestinos por Israel começou no início dos anos 70 e ainda não cessou. Mas para os que buscam mais esclarecimentos sobre a ação recente do Hamas, o fato é que cerca de 650 mil prisões ocorreram desde o início da ocupação em 1967, e 9 mil palestinos estão ainda hoje em prisões israelenses.

Entre eles estão cerca de 50 membros da velha-guarda encarcerados apesar dos Acordos de Oslo de 1993 e muitos outros aos quais Israel se recusa soltar, alegando que eles têm "sangue nas mãos", como se apenas um lado deste conflito foi culpado, ou o valor de um tipo de sangue humano fosse superior a outro.

Se fosse o caso estabelecer algum tipo de paridade mutuamente reconhecida sobre as regras básicas do conflito, o Hamas e o Hezbollah têm uma boa para fazer. E se fosse o caso demonstrar que o que é bom para um lado da fronteira deveria ser bom também para o outro, a lógica do Hamas e Hezbollah tem um forte apelo para a opinião pública árabe e muçulmana - independentemente do que o prostrado sistema estatal árabe possa dizer.

De fato, enquanto o presidente George W. Bush e outros líderes ocidentais fazem barulho sobre liberdade, democracia e o direito de Israel de se defender, a repetida afirmação de Tony Blair de que os acontecimentos da região não deveriam ser ligados a acontecimentos terríveis de outras partes está parecendo cada vez mais cretina.

A guerra em lenta expansão no Afeganistão, a devastação do Iraque, a morte e destruição em Gaza e o bombardeio de Beirute estão se mostrando uma alimentação gota a gota, lenta, mas segura, dos que acreditam que o Ocidente é incapaz de adotar uma posição moral equilibrada, e é direta ou indiretamente cúmplice de um desígnio para quebrar a vontade árabe e muçulmana e subjugá-la à força israelense.

Ao contrário do que Blair parece acreditar, é improvável que o uso da força resulte em moderação e liberalismo ao estilo ocidental. O que está em jogo aqui não é a democracia, mas o direito de resistir à arrogância israelense e ser tratado no mesmo pé que ele em todos os aspectos, incluindo o uso da força. Se Israel tem o direito "de se defender", então todos os demais também o têm.

Mais ainda, nada sugere na história da região que a destruição de movimentos populares como o Hamas ou o Hezbollah (mesmo que isto seja possível) por Israel traria os sucessores deles mais perto de uma democracia ao estilo ocidental, e tudo sugere o oposto. A invasão do Líbano por Israel em 1982 acabou com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e produziu o Hezbollah. A prisão e eliminação de Yasser Arafat só serviu para fortalecer o Hamas, e as guerras no Afeganistão, no Golfo e no Iraque geraram o terrorismo ao estilo Bin Laden, e ampliaram seu alcance e seu apelo. E não deveríamos nos surpreender se o verão de 2006 produzir mais do mesmo.

Termine como terminar a mais recente aventura de Israel, ela não produzirá maior simpatia e compreensão entre Ocidente e Oriente, ou uma redução do extremismo. Na verdade, o desfecho mais provável é que uma nova onda de terrorismo anti-Ocidente, violento e possivelmente não convencional, poderá perfeitamente se quebrar contra esta e outras praias. E todos nós - israelenses, árabes e ocidentais - sofreremos com isso.

*Ahmad Khalidi é membro adjunto sênior do St. Antony's College, Oxford, ex-negociador palestino, e co-autor, com Hussein Agha, de 'A Framework for a Palestinian National Security Doctrine'. Khalidi escreveu para 'The Guardian'