Título: O nosso indefeso presidencialismo
Autor: Sandra Cavalcanti
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

As eleições de 2002 evidenciaram que o regime político do Brasil continua carregando no ventre o monstro da ingovernabilidade. O presidente foi eleito com expressiva votação individual, mas seu partido, o PT, só conseguiu conquistar magros 17% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Ainda que somados às legendas aliadas, o governo ficou sem maioria parlamentar. Esse é o nosso indefeso presidencialismo. Quem ocupa a Presidência nessas condições precárias não tem escolha: tem de buscar uma base majoritária à custa de muitas concessões e arranjos. O risco do País é enorme. Se o esforço para organizar a tal base majoritária cai em mãos de pessoas sem princípios firmes e valores éticos, acontece o que aconteceu. Nascem daí o valerioduto, o mensalão, os sanguessugas, etc.

O presidente de plantão diz que não sabia de nada, mas ao mesmo tempo declara que todas essas coisas são useiras e vezeiras em nossa vida política. Ele tenta confundir o povo, sustentando que, durante a campanha eleitoral, receber auxilio financeiro de entidades que deixam de contabilizar essas operações em seus registros fiscais é a mesma coisa que, depois de eleito e empossado, montar um esquema de sangria dos cofres públicos para comprar consciências e legendas , como única forma de montar uma bancada majoritária obediente e fiel.

Essa diferença precisa ser sempre salientada. Não há como igualar as duas formas de atuação política. O valerioduto e o mensalão não eram nem habituais nem sistemáticos em nosso comportamento, como insiste o ocupante distraído do Planalto. Nada disso havia ocorrido antes no País.

Nosso indefeso presidencialismo já assistiu muitas vezes à instalação de balcões de negócios e ofertas de cargos e vantagens, mas nada que se compare ao assalto ao trem pagador que Lula e o PT armaram contra nós. Só cegos e fanáticos admitem que o chefe maior não sabia de nada e nunca percebeu coisa alguma.

As eleições estão chegando e os brasileiros estão, ainda, perplexos. O País está aflito e desconfiado, sentindo-se sem comando e sem rumo. Os que não têm suficiente discernimento político e se deixam comprar por qualquer favor, esses talvez ainda queiram que a atual situação continue. Mas aqueles que conseguem enxergar e analisar o que ocorreu, para esses o panorama é de desânimo e desesperança. No fundo, todos torcem e desejam que, nestas próximas eleições , saia vencedor um candidato que não tenha tomado parte nesse mar de lama. Um candidato livre dessa maldita herança de corrupção. Livre desses maus costumes que o PT introduziu em nosso frágil sistema. O País sonha com alguém que tenha compostura, que não aprove, de forma tão cúmplice, os desmandos praticados por companheiros salteadores e invasores de bens alheios ou públicos. Alguém que na escolha de sua equipe se oriente pelos critérios do mérito e da competência.

Temos esse desejo e sonhamos esse sonho. Vamos lutar e trabalhar para que isso se torne realidade e o Brasil possa ver sua alma limpa renascer. No entanto, mesmo que sejamos vitoriosos - e acredito que seremos - temos de encarar a dura realidade de nosso indefeso presidencialismo. Não adianta só eleger um excelente candidato. É absolutamente imprescindível garantir-lhe uma bancada majoritária fiel e solidária. É preciso não esquecer o fato de que as eleições parlamentares vão ocorrer na mesma data e que para elas não haverá segundo turno. Votou, está votado! Ganhou, está eleito!

Infelizmente, o nosso indefeso presidencialismo depende desse sistema eleitoral, que garante aos deputados um mandato com prazo fixo de quatro anos e mais um monte de direitos, inclusive o de mudar de partido quantas vezes quiser e não acompanhar as questões fechadas na bancada. Os correligionários do presidente, por exemplo, só o apóiam se quiserem. Até para conseguir um bom orçamento, para obter leis importantes, para reformar e agilizar a administração, tudo tem de ser negociado! Tem sido assim ao longo dos anos. Quantas iniciativas legais, decisivas para o desenvolvimento do País, continuam engavetadas, à espera do apoio parlamentar? Quantos projetos? Quantas escolas? Quantos hospitais? Quantas estradas? Quantos portos? Quantas ferrovias? Quantos centros de pesquisa?

Não temos partidos fortes porque o voto proporcional acaba com eles, por dentro, e depois a infidelidade partidária os destrói por fora. Não há punição para a traição e para a venda das consciências. Isso faz da atividade política um enorme sacrifício para as pessoas de bem e, como conseqüência, os parlamentares se tornam o alvo predileto da desmoralização perante o eleitorado, cada vez mais distante e descrente. Aliás, vale sempre a indagação: neste nosso indefeso presidencialismo, qual a força permanente do eleitor? Qual o seu papel quando o Parlamento se comporta assim? Pode o eleitor fazer alguma coisa além de ir para a rua, pintar a cara e xingar? Se a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo, não seria justo chamar o povo sempre que houvesse correções a fazer? Infelizmente, essa solução democrática não existe no regime presidencialista.

Sem voto distrital, sem fidelidade partidária, sem a exigência de um desempenho mínimo dos partidos, corremos o risco de ter de novo o pesadelo de um presidente sem maioria parlamentar e uma maioria parlamentar sem presidente!

No nosso presidencialismo indefeso, qualquer governo já nasce fraco, pois vai depender de barganhas com partidos sem comando, com legendas sem eleitorado e com parlamentares sem compromisso.

Alckmin sabe disso. Já avisou que vai enviar o projeto de reforma política no primeiro dia de seu mandato. É o caso de perguntar ao eleitor: como votará o seu candidato nesse caso? Só vote em quem assumir, também, esse compromisso.

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal constituinte, secretária de Serviços Sociais no governo Carlos Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco

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