Título: O programa nuclear argentino
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/08/2006, Notas e Informações, p. A2

A Argentina decidiu reiniciar a construção de sua terceira usina nuclear para a geração de eletricidade. Também está ultimando os planos preliminares para a construção de uma quarta usina e esta semana deverá anunciar a retomada do processo de enriquecimento de urânio para fins pacíficos. Ao contrário do que aconteceu durante o regime militar, em meados da década de 1970 e início da seguinte, o novo programa nuclear argentino não tem objetivos geopolíticos. O governo trata, pura e simplesmente, de prevenir uma crise energética cujos contornos já são visíveis. Até recentemente, a Argentina era não só auto-suficiente em petróleo e gás, como exportava os combustíveis. No ano passado, não pôde honrar integralmente contratos de fornecimento de gás ao Chile. Hoje, suas usinas termoelétricas dependem do gás importado da Bolívia. E as reservas provadas de petróleo não deverão durar mais de 10 anos.

O governo argentino pretende investir também na produção de hidroeletricidade, construindo grandes usinas em sociedade com o Paraguai e o Brasil, nos Rios Paraná e Uruguai, além de aumentar a capacidade da Usina de Yaciretá. Mas tais empreendimentos dependem de negociações diplomáticas, acertos financeiros e, finalmente, de obras civis que demoram a ser concluídas.

Já a construção das usinas nucleares depende apenas da decisão do governo e de contratos com fornecedores estrangeiros que desejam ardentemente ampliar seus negócios. A Usina de Atucha II, por exemplo, começou a ser construída em 1981 e foi paralisada em 1994. Suas obras civis estão praticamente concluídas e os equipamentos de geração estão armazenados há pelos menos 10 anos. Decidida a retomada, ela poderá entrar em operação, produzindo 745 megawatts, em meados de 2009. Já a quarta usina, cujos planos preliminares devem ser completados em um ano, deverá ter produção equivalente à de Atucha II e sua construção deve ser concluída em três ou quatro anos.

Já o reinício das operações de enriquecimento de urânio - paralisadas há um quarto de século - terá como objetivo não apenas o abastecimento das usinas em operação e as projetadas, como a exportação do combustível. A Argentina, aliás, já é exportadora de equipamentos nucleares desde a década de 1980.

Brasil e Argentina, depois que decidiram pôr um fim à corrida nuclear que empreenderam durante os regimes militares, comprometeram-se com os organismos internacionais a somente utilizar o átomo para fins pacíficos, mas deram rumos distintos a seus programas nucleares. O governo brasileiro passou a subsidiar, com recursos sempre insuficientes, o desenvolvimento da tecnologia de enriquecimento por ultracentrífugas e da construção de pequenos reatores, para aplicação naval e em áreas isoladas do País. A Argentina incentivou a Invap - empresa estatal encarregada da aplicação da tecnologia nuclear - a diversificar suas atividades, para não depender de subsídios governamentais, e a exportar seus produtos.

O resultado dessa política foi a exportação de um reator de radioisótopos para a Argélia, de uma planta de radiofármacos para Cuba, de um centro atômico para o Egito e de 18 centros de radioterapia para a Venezuela. Há dias, foi inaugurado na Austrália um reator de radioisótopos fornecido pela Argentina, e que abastecerá, também, a Nova Zelândia e alguns países asiáticos. Enquanto isso, o Brasil construía uma planta de enriquecimento de urânio em Rezende que, quando produzir a plena capacidade, atenderá a não mais de metade das necessidades brasileiras de combustível.

O dinamismo da indústria nuclear argentina é muito maior do que o da brasileira. No entanto, no essencial, as políticas dos dois países estão unidas umbilicalmente pelos acordos nucleares assinados após a redemocratização. Os dois países estão sujeitos às normas e inspeções previstas nos Tratados Quadripartite, de Não-Proliferação (TNP) e de Tlatelolco.

Nos últimos tempos, o governo argentino tem conversado com Brasília para que os dois países assinem o protocolo adicional do TNP. Essa garantia adicional de uso pacífico da energia nuclear é necessária para que a Argentina expanda suas exportações. O Brasil, no entanto, por miopia nacionalista, teima em postergar uma decisão sobre o assunto. Isso não é bom para a Argentina e é muito ruim para o Brasil.