Título: Os 'meninos' do Planalto
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/09/2006, Nacional, p. A6

Quem viu a entrevista do presidente Luiz Inácio da Silva no Bom Dia Brasil, ouviu perfeitamente quando ele tratou com amabilidade familiar os 'meninos' operadores de uma trama que, tudo indica, tem implicações mais sérias que a montagem de um dossiê de acusações contra adversários eleitorais: envolve dinheiro suspeito, mostra derivações criminosas do aparelhamento da máquina pública pelo PT e lança forte suspeita de que, mais uma vez, instrumentos de Estado são utilizados para tentar limpar a cena do crime.

Arguto na identificação de 'movimentação atípica' de R$ 35 mil na conta de Francenildo Costa e cego às movimentações exorbitantes das contas do valerioduto, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) demora para estranhar a movimentação nas contas já identificadas de onde foram sacados os R$ 1 milhão e 700 mil encontrados em poder dos petistas encarregados de pagar pelo dossiê.

Exibicionista e célere quando se trata de expor presas preciosas e úteis ao projeto de fazer da Polícia Federal um objeto de propaganda política, o governo é discreto, omisso mesmo, quando as prisões envolvem amigos e assessores do presidente da República.

Junto a essa proteção, o Planalto ensaia uma 'reação forte' que, pelo visto ontem em todas as manifestações de autodefesa, resume-se ao de sempre: acariciar os malfeitores, inverter a ordem dos fatores, transformando acusados em vítimas, insinuar um levante dos movimentos sociais como meio de intimidação e imprimir caráter de naturalidade ao ocorrido.

O presidente começou cedo, chamando de 'meninos' os integrantes (assumidos) da quadrilha do dossiê e isentando de culpa seu ex-coordenador de campanha, Ricardo Berzoini, que foi avisado do plano, mas não foi capaz de dissuadir seus executores nem de alertar seu superior. Ou seja, não viu risco nem inadequação na conspirata dos subordinados.

Depois veio o novo coordenador, Marco Aurélio Garcia, dizendo que o caso não 'cola' em Lula, como se a questão em jogo já não tivesse passado da esfera eleitoral para o terreno criminal e se a dianteira em pesquisas, ou mesmo a vitória nas urnas, servisse de salvaguarda a ilegalidades.

Em seguida, Ricardo Berzoini divulgou carta aberta apontando 'onda de histeria e descontrole' patrocinada pela oposição, que foi pega de surpresa pelo repentino presente e não disparou um só tiro mortal nesse combate. Todos eles saíram das armas do campo amigo.

Simultaneamente, o ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, entra em cena classificando a crise como 'normal' e ressuscitando a tese de 'refundação' do PT, enterrada pelo próprio partido um ano atrás; completando o pacote, movimentos sociais atrelados ao governo lançam manifesto para disseminar a versão do golpe, resumindo os acontecimentos a uma ação de 'perdedores' interessados em 'melar' as eleições.

Trata-se da reedição de truques já conhecidos, bem-sucedidos anteriormente, mas gastos pelo excesso de uso e inverossímeis como arquitetura de reação por contraditórios entre si e discrepantes da realidade.

Na entrevista da manhã, o presidente Lula mesmo desmentiu que houvesse acusado a oposição de tentar 'melar' a eleição, disse que seu governo não joga 'lixo' para debaixo do tapete e, portanto, reconheceu que há entulho em seu caminho.

Se a existência de lixo na estrada é, como diz Tarso Genro, sinal de normalidade, sabe-se lá o que seria uma situação anômala. Já aquilo que o presidente do PT chamou de 'onda de histeria' oposicionista, na definição do presidente da República é uma situação 'muito abominável', provocada pela 'insanidade das pessoas'.

Lula não deu a entender que 'as pessoas' fossem 'a oposição e seus tentáculos nos meios de comunicação', como imputam as tropas que pregam o choque nas ruas caso algo ameace a 'goleada do povo'. Ao contrário. 'Se companheiros tiveram a ilusão de que encontraram algo tão poderoso que poderia mudar o planeta Terra, essas pessoas pagarão', disse Lula. Sublinhe-se o termo 'companheiros' a bem da nitidez da contradição.

O governo e o PT reagiram às tontas, cada qual atirando para um lado, defendendo teses por eles desmentidas e de frágil sustentação no mundo real.

É o caso da exigência de atenção jornalística ao conteúdo do dossiê. Ao mesmo tempo em que falou sobre a importância do teor do material, o presidente Lula afirmou que o dossiê, para ele, não fazia sentido e lembrou, como prova de inocência agora, seu repúdio ao dossiê Cayman, uma montagem de acusações contra tucanos para atingir Mário Covas na eleição de 1998.

Se as duas situações são comparáveis, natural seria desqualificar (ou qualificar) ambos. Mas, vamos que haja fundamento naquelas acusações, a questão obscura é a seguinte: por que agir nas sombras, não apresentá-las à polícia, entregar os documentos ao Ministério Público e denunciar à imprensa de maneira lícita? Seria muito menos arriscado, pois, como disse o presidente, 'mexer com bandido não dá certo'.