Título: Devolveu o cartão, chocou a vizinhança
Autor: Luciana Nunes Leal e Lisandra Paraguassú,
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2006, Nacional, p. A8

À margem da ação predatória de sanguessugas, mensaleiros e vampiros, de quem ouviu falar remotamente pelo noticiário, Marcia Miranda tomou uma decisão que para ela não passou de simples obrigação e da qual não se arrepende nem um pouco. Logo que arrumou emprego com carteira assinada, abriu mão dos R$ 15 que o governo Lula lhe mandava todo mês e pediu seu descredenciamento do Bolsa Família.

O gesto de Marcia custou-lhe reprovações e olhares desconfiados pelas ruas de Boituva, a 120 quilômetros de São Paulo, onde mora há oito anos com Gilberto Ribeiro da Silva, seu companheiro, metalúrgico que acaba de ingressar na lista do desemprego, e duas filhas, Beatriz, de 18 anos, e Lizandra, de 6. "O pessoal fica perguntando por que eu fiz isso, porque devolvi o cartão", relata.

Ela fica acuada, mesmo envergonhada. Precavida, tem até evitado sair muito à rua. Não pleiteia condecoração, mas quer de volta o sossego que parece abalado desde que, em fevereiro, foi à prefeitura para entregar o cartão do Bolsa Família. "Eu falo sempre pro pessoal que arrumei um trabalho fixo e não é justo tomar o lugar de quem precisa mais."

A intolerância chegou a um ponto que ela anda com receio de ser ofendida uma hora dessas. Ninguém chegou a esse extremo, ela não foi alvo de hostilidades, mas tem sido assediada aqui e ali, na porta da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Vianna, onde a filha menor estuda, e também a caminho do serviço, 15 quadras entre sua casa e a da família que a empregou como doméstica, com direitos assegurados, férias, fundo de garantia, 13.º e um ordenado de R$ 400: 26 vezes o que Lula mandava.

Aos 39 anos, nascida em Alumínio (SP), Marcia era cadastrada no Bolsa-Família desde 2003. Os R$ 15 eram bem-vindos. "A gente juntava o dinheirinho e dava para comprar alguma coisa para ela", conta, apontando para Lizandra. "A gente dava mais era uma roupinha melhor, uma bolsa pra escola."

Marcia não se acomodou. Foi atrás de um trabalho remunerado, até que a mulher de um empresário da construção civil a contratou, há 6 meses. O sonho, agora, é sair da casa de Vila Aparecida, que tem dois cômodos de paredes desbotadas e cozinha. Mas o sonho pode demorar. Há duas semanas, o facão passou na metalúrgica onde o marido trabalhava a R$ 3, 57 a hora. Gilberto, de 33 anos, e outros 7 foram demitidos.

Também moradora de Boituva, Ana Maria de Oliveira, de 24 anos, recebe R$ 45 do Bolsa-Família. Ela ainda não está em condições de repetir o gesto da vizinha Marcia. Ana quer trabalhar, mas não tem com quem deixar os quatro filhos: Sara, de 10 anos, Samuel, 8, Sandilaine, 7, e Isabel Cristina, 1 ano e 4 meses.

O marido, Jonas de Oliveira, de 29 anos, é jardineiro. Ele trabalha numa companhia de limpeza. Tira R$ 140 por mês. Quando dá sorte, arruma um bico e levanta mais R$ 10 por lote carpido. Ele não quer nem que a mulher continue estudando porque acha perigoso as crianças ficarem sozinhas.

"A vida tá muito dura", desabafa ela, um tanto desconsolada com "tanto gasto". Cita as contas de água (R$ 42) e de luz (R$ 65)". Para reforçar o orçamento, o casal fica até duas e tanto da madrugada armando pipas, que o filho Samuel vende durante o dia, por R$ 1 cada.