Título: De mãos abanando
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2006, Economia, p. B2

Tudo leva a crer que o adiamento sine die das negociações ministeriais na Rodada Doha comprometerá o prazo fixado para a conclusão de negociações, pois é incompatível com as exigências do calendário político norte-americano, em particular quanto ao prazo de vigência da Trade Promotion Authority, concedida pelo Congresso ao governo Bush. A menos de desenvolvimentos inesperados e espetaculares, o mais provável é um adiamento da conclusão da atual rodada de negociações por dois ou três anos, ao estilo do que ocorreu com a Rodada Uruguai, e, mesmo assim, com base em hipótese otimista sobre a disposição do Congresso dos Estados Unidos quanto a um futuro fast track.

Se o impasse em Genebra tivesse sido rompido, é quase certo que o noticiário da semana passada na imprensa brasileira teria sido dominado pela exaltação das posições protagônicas em defesa da liberalização agrícola, por parte do presidente Lula, na reunião do G-8, em São Petersburgo, e do ministro Celso Amorim, na Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra. Mas as negociações encalharam. O governo teve de digerir resultado que é particularmente desfavorável aos produtores agrícolas mais eficientes, entre os quais a Argentina, a Austrália e o Brasil. O assunto não mereceu maiores comentários presidenciais, com o presidente talvez escaldado e consciente de que o pretendido protagonismo do Brasil como paladino de Doha no âmbito do G-8 era irrealista. O peso do Brasil, embora muito maior do que poderia ser explicado por dados econômicos, se mostrou insuficiente para vencer as resistências protecionistas da União Européia e dos Estados Unidos. Um Brasil paladino da liberalização teria tido mais credibilidade se tivesse sido convincente em demonstrar que tinha disposição de reduzir a proteção ao seu próprio mercado de produtos industriais.

O que se viu na semana passada foi uma deprimente troca de acusações entre a União Européia e os Estados Unidos quanto à culpa pelo ocorrido. O Brasil endossou a posição majoritária de que foram os Estados Unidos os principais culpados, ao se recusarem a melhorar sua proposta quanto a subsídios domésticos à agricultura. A posição brasileira é compreensível, dado que, enquanto a timidez da oferta européia relativa a tarifas poderia ser contornada numa negociação bilateral, compromissos quanto à redução de subsídios só fazem sentido no âmbito multilateral. Além disto, o tema redução tarifária é alarmantemente divisivo na coalizão do G-20, com a Índia insistindo numa longa lista de exceção de produtos sensíveis. De qualquer forma, a culpa pelo impasse não pode ser imputada ao Brasil, inclusive porque as negociações sobre acesso a mercados de bens industriais não chegaram a ocupar lugar central na agenda. Alan Beattie, no Financial Times (27/7), comparou a morte da rodada ao assassinato no Orient Express, em que todos são culpados. Mas não listou o Brasil entre os passageiros. Somente entre os mais radicais defensores do protecionismo agrícola no Congresso norte-americano tem curso a interpretação de que o Brasil seria responsável pelo impasse, dado que resistiu à proposta dos Estados Unidos de corte de subsídios que os mantém no patamar atual...

Os eventos chamaram a atenção para as limitações do processo negociador na OMC. É claro que no âmago do problema está a falta de vontade política das economias desenvolvidas de desmantelar o protecionismo agrícola, dadas as implicações eleitorais significativas, agora mais visíveis nos Estados Unidos, mas também relevantes na Europa. Mas existem outras dificuldades. A tradição de considerar, como base para as negociações, os níveis tarifários e o volume de subsídios consolidados em compromissos anteriores - e não os efetivamente implementados - incentiva propostas que não incorporam redução efetiva dos entraves ao comércio. Tanto os Estados Unidos estão oferecendo "água", ou seja, a manutenção do status quo em relação a subsídios agrícolas, quanto o Brasil tenta oferecer "água" em relação às tarifas sobre produtos industriais, cujo nível aplicado está muito abaixo dos 35% consolidados na Rodada Uruguai. Outra dificuldade criada pela tradição das negociações é a proliferação de tratamento excepcional de produtos "sensíveis". O objetivo das negociações comerciais multilaterais é a redução de barreiras ao comércio. Produtos sensíveis são os que desfrutam de maior proteção, porque interesses especiais são capazes de extrair favores especiais dos respectivos governos. Excluir produtos sensíveis conflita diretamente com o objetivo de reduzir tarifas. No longo prazo, uma sucessão de negociações que evite a redução da proteção a produtos sensíveis tornará as negociações futuras crescentemente infrutíferas. Há, assim, argumentos poderosos em favor da adoção de critérios que se apliquem a tarifas e subsídios referentes à totalidade das linhas tarifárias sem possibilidade de substituição, e de que se abandone o doce esporte de negociar com interesses especiais no âmbito nacional e tentar obter tratamento excepcional em Genebra.

Será que acordos bilaterais podem substituir as negociações multilaterais? É difícil imaginar que as negociações do Mercosul com a União Européia tenham sido facilitadas pelo ingresso da Venezuela. Levando ainda em conta as restrições políticas ao Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca) e a óbvia dificuldade de uma negociação 5+1 do Mercosul com os Estados Unidos, o que se tem é um cenário de mãos abanando como resultado concreto da política externa lulista. A constatação do desastre poderá tentar o governo brasileiro a diminuir a ambição quanto à redução dos subsídios agrícolas nos Estados Unidos para retomar Doha. Isto seria lamentável, pois o Brasil estaria abrindo mão das concessões de seus parceiros que lhe trariam maiores ganhos.