Título: Eles saberão perder
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/08/2006, Espaço aberto, p. A2

Eles podem ficar desesperados, sim, mas nem por isso deverão ir às últimas conseqüências - como alguns temem. É verdade que é muito duro, para 23 mil pessoas confortavelmente colocadas em 32 ministérios, graças ao companheirismo partidário ou ao mero compadrio, sem o respaldo da qualificação técnica, de repente se verem postas ao desabrigo profissional e financeiro. Sem dúvida, é penoso, para tanta gente, perder o status adquirido há quatro anos, que, embora não tenha significado um esforço de aprendizado ou de aquisição de conhecimentos, representou um grande dispêndio de energia áulica, de dedicação serviçal a lideranças correligionárias, às vezes com indigestão causada pelo acúmulo de sapos engolidos. Mas, apesar disso, será mesmo - como alguns acham, tomados de sério temor - que os apeados do poder, pelas urnas, chegarão ao desvario de praticar boicotes ou sabotagens na máquina da administração pública, antes de terem de entregar o poder aos vitoriosos adversários?

A afirmação de que "por ter roído muito osso não vai deixar o filé mignon para o adversário" revela, certamente, uma noção de poder que é a de usufruir vantagens, aproveitar regalias, beneficiar-se dos pequenos (ou grandes) privilégios que o poder oferece a quem o exerce. Se o "gozo" do poder se resume a isso, e é isso que, de cima a baixo de um governo, motiva os que se apossaram da máquina da administração, entende-se a perplexidade que estes devem sentir ao serem postos para fora, com rapidez semelhante à que os conduziu com muita sede ao pote. Mas não é razoável admitir que todos estes sejam irresponsáveis ou de todo alheados do interesse público, a ponto de deixarem o ressentimento, pela perda da "aparelhada" função, levá-los a cometer atos anti-sociais. Eles são pais de família e também devem preocupar-se com a imagem que deixarão para os próprios filhos e netos. Além do mais, muitos deles não devem ter tido nenhuma participação nas bandalheiras gerais, embora só com dificuldades possam escapar dos seus respingos.

Eles saberão perder porque acabarão entendendo o recado das urnas quanto à necessidade de se recuperarem, para as futuras gerações - das quais seus descendentes também farão parte -, os valores que estão sendo destroçados: o reconhecimento do esforço pessoal do aprendizado, o apreço pelo conhecimento, a ética como principio básico, o culto à integridade, o respeito às leis e aos direitos dos demais cidadãos, o estímulo ao esforço de produção, o crescimento segundo a competência, a precisão do sentido das palavras, a submissão à verdade dos fatos, a compostura no exercício do alto cargo, o decoro na vida pública, a dedicação real aos interesses coletivos.

Eles saberão perder porque acabarão entendendo que as fotografias dos palanques tinham de ser tiradas com bom zoom - para não ser mostrado o vexame do vazio dos comícios; que era muito arriscado circular pelas ruas sem claques adestradas - que pudessem abafar as inesperadas explosões de vaias; que não se agüentavam mais tantos improvisos repletos de gafes, impropriedades e obviedades, abordando, rasteiramente, uma grande quantidade de assuntos de que não se tinha o menor conhecimento; que não se suportava a descarada burla à legislação eleitoral, culminada com o extremo deboche de se dizer que não se sabe se se está sendo governante ou candidato; que não se tinha mais paciência para agüentar a leviandade de quem até parecia estar brincando de governar, inventando coisas estapafúrdias para desviar a atenção das bandalheiras (tais como a ridícula idéia de uma "Constituinte exclusiva" para fazer a reforma política, ou a convocação de apaniguados causídicos para ajudar a restringir o essencial poder de fiscalização do Parlamento, via CPIs). E acabarão entendendo, acima de tudo, que, em todo esse processo de busca obcecada de permanência no poder, o que menos se via eram idéias reais, planos concretos, metas consistentes, sobre o que fazer, de fato, no governo.

Eles saberão perder porque, com certeza, já perceberam o brutal estrago de ânimo causado à juventude nos últimos quatro anos, ante a corrupção institucionalizada em grau jamais antes imaginado - no mais amplo espaço público e em todos os Poderes de Estado. Não lhes será fácil, com certeza, manter algum tipo de cumplicidade com um sistema corrompido que gerou, na parte mais esclarecida e informada da sociedade, um profundo nojo em relação à vida política e seus agentes - sentimento esse capaz de se tornar um vírus de grande letalidade para a nossa democracia. E também eles saberão perder porque, ao fim e ao cabo, não desejarão ser confundidos com aqueles dos grotões, cuja adesão se deve à exploração nua e crua da ignorância, aliada à compra explícita das consciências.

Eles saberão perder porque, apesar das perdas pessoais que haverão de ter quando cessar o "aparelhamento" em que estão inseridos, quando acabar o manancial (de recursos públicos) que desfrutaram, não por mérito profissional, mas por fidelidade grupal, terão eles de buscar o aperfeiçoamento do conhecimento, da competência, da real qualidade do serviço prestado, e não mais da pretensa esperteza, da pura embromação, própria da atividade de "faz-de-conta", no reino do "como se fosse".

Eles saberão perder porque acabarão entendendo, enfim, que os gostos precisam ser respeitados e o eleitorado tem todo o direito de preferir, no momento, café com leite a jerimum com rapadura.