Título: Kirchner amplia seus poderes
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2006, Internacional, p. A17

Desde ontem de madrugada, Néstor Kirchner tornou-se o presidente civil mais poderoso da história da Argentina. Kirchner - que já controla o Congresso Nacional, os governadores, a Corte Suprema e tem forte influência sobre a mídia - conseguiu que a Câmara de Deputados aprovasse a denominada "lei de superpoderes". Com ela, Kirchner poderá reformular o orçamento nacional da forma que quiser, em caráter permanente (até ontem, a aplicação de superpoderes era circunstancial e temporária), sem o controle ou aprovação prévia do Parlamento. Essa situação é sui generis entre os países da região, onde o Poder Legislativo tem a prerrogativa de fiscalizar a formulação e as eventuais reformulações do orçamento.

A Câmara aprovou a lei depois de 12 horas de duros debates. O governo conseguiu 135 votos a favor. Os partidos da oposição, divididos e desarticulados, reuniram somente 91 votos. Seus principais líderes foram unânimes em afirmar que os superpoderes significam "a morte da república".

O governo lançou uma forte ofensiva na mídia para reduzir o impacto da lei. Os ministros de Kirchner indicam que é "incorreto e exagerado" o termo "superpoderes". Poucas horas antes do debate no Parlamento, Kirchner atacou a oposição: "Eles são uma máquina de impedir. Não querem me deixar trabalhar." Segundo Kirchner, a lei permitirá governar com "mais rapidez".

A oposição e os analistas políticos consideram que Kirchner usará os poderes especiais para reordenar o orçamento com fins eleitorais. Desta forma, poderá fornecer verbas extras para os governos provinciais e subsídios para programas sociais, obras públicas, empresas, aumentar ou diminuir salários e aposentadorias.

Kirchner está de olho nas eleições presidenciais do ano que vem. As especulações no âmbito político indicam que ele próprio seria candidato à reeleição, embora não se descarte a possibilidade a primeira-dama e senadora Cristina Fernández de Kirchner se apresentar no lugar dele.

Com a lei de superpoderes Kirchner, por meio de seu chefe do gabinete e seu braço direito, Alberto Fernández, poderá alterar o orçamento de US$ 34 bilhões à vontade. Ele terá liberdade para reduzir os fundos de um ministério e passá-los para outros, bem como os gastos internos de cada organismo federal. Os parlamentares somente poderão aprovar ou rejeitar os números globais do orçamento e a quantia máxima de endividamento público para cada ano.

O deputado Adrián Pérez, do centro-esquerdista Alternativa por uma República Igualitária, atacou Kirchner: "Existe voracidade de poder nesta gestão presidencial." O líder do centro-direitista Proposta Republicana, o empresário Maurício Macri, que também é presidente do time Boca Juniors, sustentou que a aprovação dos superpoderes demonstra "o debilitamento institucional". Segundo ele, "pensar que uma única pessoa vá fazer o que quiser com os fundos públicos é desnaturalizar a essência do Congresso".

Para o analista político e sociólogo Carlos Fara, a lei de superpoderes não teria custos políticos para Kirchner a curto prazo. Segundo ele, a população considera que o governo "está tentando fazer as coisas e, nesse sentido, é preciso deixá-lo trabalhar". Fara sustenta que a economia argentina está forte, fato que reduz a tensão que a aprovação dos poderes especiais poderia causar.

SUI GENERIS

Segundo a Associação Argentina de Orçamento e Administração Financeira (Asap) os poderes obtidos por Kirchner são sui generis se comparados aos de governos dos outros países da região, onde os Parlamentos têm grande controle sobre os orçamentos de seus respectivos países.

O exemplo mais destacado, segundo a Asap, é o Brasil, onde a Constituição indica que tanto uma mudança de verbas entre programas de um mesmo ministério, como o aumento do gasto ou financiamento do déficit das empresas públicas deve passar pela Câmara Federal e o Senado.

No caso de Chile, Peru e Paraguai o poder dos legisladores também é significativo. Até mesmo na Venezuela, cujo presidente, Hugo Chávez, é acusado de autoritarismo, o Parlamento tem um controle forte do orçamento.