Título: Termômetro democrático
Autor: José Renato Nalini
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

Há quem considere o excesso de demandas judiciais um elevado índice de democracia. Afinal, a Constituição de 1988 foi a que mais acreditou na solução dos conflitos mediante atuação do Poder Judiciário. Depois de sua promulgação, multiplicaram-se os processos, que hoje atingem a fantástica soma de 53 milhões em curso.

Tal cifra indicaria que, de cada três brasileiros, um estaria com processo na Justiça. Conclusão falaciosa, pois existe muita demanda impulsionada pelo Estado, que litiga entre si, nas suas múltiplas configurações.

Não é incomum, por exemplo, que as agências ambientais acionem o governo em todas as instâncias, por maltrato em relação à natureza. Em tema de SUS, é freqüente o chamamento das outras esferas não demandadas, para responder à pretensão posta em juízo. Assim, se o autor postula contra o município, este chama pelo Estado e pela União. E vice-versa, quando são os outros os ocupantes do pólo passivo da relação jurídico-processual.

Um dos aspectos cruéis desse número vultoso de processos é a evidente instrumentalização da Justiça. Ou seja, por confiarem nos entraves jurisdicionais, nas quatro instâncias sucessivas, nas dezenas de possibilidade de recursos, os devedores consideram proveitoso valer-se do Judiciário para conferir longevidade às suas obrigações.

Contribui também para a eternização das lides a cultura jurídica arcaica, a confundir processo - que é instrumento de realização do justo - com finalidade em si. Mais vale insistir no procedimentalismo, explorar nulidades, invocar o excessivo formalismo como dogma da segurança jurídica do que pagar o que se deve.

Um país com 1 milhão de advogados e com 1.003 Faculdades de Direito, a arremessar no mercado de trabalho cerca de 20 mil novos bacharéis a cada semestre, não concebe a convivência social sem os milhões de processos em curso.

As tentativas de conferir racionalidade e eficiência ao Judiciário não foram até o momento suficientemente bem-sucedidas. Os Juizados Especiais, grande esperança, não mereceram o investimento necessário. Não se fala em recursos materiais, senão em credibilidade.

O volume de feitos submetidos a essas unidades, nas quais deve prevalecer a singeleza, a oralidade, a conciliação, logo os transforma em expressões bastante próximas da Justiça convencional. As audiências são designadas para datas longínquas. A formalidade predomina. O comparecimento da parte sem advogado é quase nulo.

O que fazer?

A curto prazo, nada merecerá solução. O Judiciário é uma das funções mais antigas da civilização. Impregna-se de um anacronismo dificilmente superável, mantidas as atuais estratégias de formação de seus profissionais. O mundo mudou e o Direito custa a perceber isso. O ritmo da sociedade contemporânea não se compatibiliza com a serenidade da atuação judicial. Concebida para uma sociedade estabilizada, com os tradicionais conflitos interindividuais, ausente a volúpia insana do demandismo.

A longo prazo, é urgente a reforma da formação jurídica, para que os novos bacharéis se compenetrem de que o Direito é ferramenta de pacificação e que esta não se obtém exclusivamente perante o Estado-juiz. O advogado do futuro precisa ser um hábil negociador, um conhecedor profundo da natureza humana, paciente para conciliar, aconselhar transigências, encaminhar seus clientes para alternativas menos lentas, dispendiosas e angustiantes do que as propiciadas pela Justiça humana.

O Judiciário deve ser a última ratio. Só deve ser acionado quando tudo o mais falhar. Mas não se deve deixar de insistir em que a sociedade solucione seus conflitos de maneira autônoma, eticamente superior à resposta heterônoma editada por uma autoridade que é expressão da soberania estatal.

A construção desse novo perfil profissional ainda está muito distanciada de nossos dias. Predomina a velha, repisada, superada fórmula de ensinar Direito mediante a leitura dos códigos e das leis, entremeada com algumas lições doutrinárias e jurisprudenciais. Sistema que dá prioridade à capacidade de memorização, inibe a criatividade, não deixa o aluno pensar, pois isso poderia trazer desconforto para o funcionamento da escola.

Enquanto isso não vem, e para desafogar o Judiciário desse volume insensato de dezenas de milhões de processos, urge adotar a informatização em todas as etapas. Reduzir o uso do suporte papel, causa de adensamento dos autos, a dificultar a elaboração da resposta judicial. Simplificação do processo que não é senão um acessório na busca do justo humano possível.

Um corte brusco nesses milhões seria desobstruir o Poder Judiciário das execuções fiscais. A Justiça não pode ser balcão de cobrança das dívidas do Estado. Libertada dos milhões de processos de cobrança da dívida ativa, o Judiciário poderia melhor cumprir a sua missão de atender a todos, não apenas ao próprio Estado, do qual é também integrante.

A velha receita, decorada no discurso do conservadorismo, é o de que o Judiciário se ressente de pessoal e de recursos materiais. Realidade calcada na concepção de que todo e qualquer problema humano deve ser resolvido por um juiz. Se essa versão de Justiça continuar a prevalecer, a sociedade ideal será um enorme tribunal, com um julgador em cada esquina, a solucionar questões que a sensatez e a maturidade cidadã não podem simplesmente confiar ao Estado.

Excesso de processos judiciais em curso nem sempre é termômetro democrático, senão sintoma de uma conflituosidade mórbida, gerada por alguns desvios que devem ser corrigidos, para que o Brasil edifique uma sociedade mais madura, em que justiça e solidariedade sejam componentes espontâneos, e não necessariamente produzidos por um profissional em nome do Estado.