Título: Papel em desalinho
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/09/2006, Nacional, p. A6

Com aquela rudeza de modos que lhe é peculiar - 'Não tenho tempo a perder com Fernando Henrique' -, o presidente Luiz Inácio da Silva acabou levantando um bom tema quando impôs reparo à conduta de Fernando Henrique Cardoso, segundo ele o único ex-presidente que não sabe se comportar como tal.

Depreende-se, portanto, que na opinião do atual, os três ex ainda passíveis de avaliação, por vivos, têm atitude exemplar: José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco, pela ordem de entrada em cena.

Aí vai uma questão de gosto, mas o aspecto relevante a ser extraído da irrelevância que Lula atribui ao antecessor é que o Brasil, de fato, não tem ainda bem definido o que seria o papel institucional, ou mesmo social, de um ex-presidente da República.

Nos Estados Unidos - uma comparação sempre inevitável - eles pairam acima do cotidiano: são conselheiros, interlocutores, defensores de causas, seja em que área for, para o bem ou para o mal, viram referências. Não raro são reabilitados ainda em vida, como no caso de Richard Nixon, protagonista de um dos maiores vexames da política interna norte-americana.

Por aqui, com perdão da ligeireza do conceito, cada um se vira como pode: José Sarney mudou o domicílio eleitoral para o longínquo Amapá a fim de assegurar mandatos sucessivos e, entre uma eleição e outra, alia-se ao governo da ocasião; Fernando Collor tenta, ainda sem sucesso, vencer o ostracismo por meio das urnas alagoanas; Itamar Franco nos últimos anos ocupou (por imposição) cargos de representação diplomática aos quais deu caráter de sinecuras, governou Minas Gerais por desastrosos quatro anos, tentou duas vezes ser candidato a presidente e, nas horas vagas, implicou com os sucessores.

Fernando Henrique chegou a cogitar a disputa de um mandato de senador por Goiás, mas a idéia não prosperou. Saiu da Presidência anunciando a intenção de inaugurar um novo modelo para ex-presidentes no Brasil. Pensava em algo próximo ao padrão americano e, em face dessa idéia, fundou um instituto, publicou dois livros, dá palestras, faz política partidária e, nessa atividade, recebe apoios e críticas, comete erros - como não raro falar além da conta, de certa forma banalizando sua figura - e acertos, como na carta ao PSDB chamando o partido às falas.

Se este ou qualquer um daqueles é o comportamento mais adequado a ex-presidentes da República no Brasil por ora é algo que fica a cargo de julgamentos individuais e subjetivos. Até que o País e a cultura política cheguem, com a prática e o passar dos anos, a um padrão de conduta consensualmente aceitável.

De quando em vez, é ventilada a idéia de dar aos ex-presidentes o cargo de senador vitalício, a fim de lhes garantir uma função por intermédio da qual possam contribuir para o debate e resolução de questões nacionais, sem que precisem submeter-se aos ditames da política eleitoral.

Há prós, como o exposto acima, mas há contras bem sustentados e objetivos, como o desequilíbrio da representação estadual no Senado. Hoje, por exemplo, São Paulo, Alagoas, Minas e Amapá teriam um senador a mais, além dos três eleitos por voto majoritário.

Ademais, há a restrição do sentido biônico do mandato por delegação e vitalício, o que entre nós remete a deformações patrocinadas pelo regime militar. Outro dado que emperra a discussão é a resistência de conferir a mesma prerrogativa dos outros a Fernando Collor, deposto por impeachment. Quando João Figueiredo estava vivo, discutia-se também se seria legítimo um general nomeado pelo arbítrio tornar-se senador.

E se o critério de limitação fosse a ausência de delegação popular para o presidente em questão, em tese poder-se-ia negar o direito a José Sarney, que foi escolhido indiretamente junto com Tancredo Neves em 1985, e a Itamar Franco, por não ser dono dos votos destinados a Collor.

Como se vê, o tema é complexo, instigante e cheio de variantes que envolvem o papel de um ex-presidente da República. Lula pode não ter tempo hoje para prestar atenção no antecessor que lhe faz oposição, mas já que levantou o assunto poderia reservar espaço em seus afazeres para se dedicar a ele com mais polidez de modos e requinte de raciocínio, pois, agora ou em 2010, um dia também será um ex-presidente.

E, queiram as circunstâncias, com vigor para usar a experiência vivida em favor do País e recusar-se à aposentadoria compulsória porque a Presidência da República é o ápice para a carreira de um político, mas passar por ela não condena ninguém à interdição de ações e pensamentos.

Punhos À parte o inusitado da surpresa alegada pelo governo brasileiro com a encampação das duas refinarias da Petrobrás sem pagamento de indenização pela Bolívia - dado o histórico do caso -, chama atenção a força empregada no uso de punhos de aço no trato da política interna e a maciez dos punhos de renda no manejo de um assunto de agressão externa.