Título: Doha, crise transitória ou mudança definitiva?
Autor: Maria Lúcia L. M. Pádua Lima
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

A suspensão das negociações da Rodada Doha por tempo indeterminado frustra as expectativas de avanços significativos na liberalização comercial em âmbito multilateral. A Rodada Doha, lançada em novembro de 2001, significava a reafirmação de que a redução das barreiras comerciais continuava a ser o grande objetivo da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Havia, porém, uma qualificação crucial no Mandato de Doha: o reconhecimento de que a liberalização comercial era condição necessária, mas não suficiente para reduzir a assimetria entre os países. Formalmente, a tese de que o livre comércio por si só garantiria o desenvolvimento estava ultrapassada.

Não é por outra razão que na Rodada Doha a questão da liberalização na agricultura ocupou o epicentro das negociações. Os dois objetivos principais a serem alcançados nessa área eram melhorar substancialmente o acesso a mercados e reduzir todas as formas de subsídios à exportação e de apoio doméstico distorcido ao comércio. No entanto, outros tópicos também eram considerados essenciais para uma abertura real dos mercados.

Além das dificuldades inerentes ao Mandato de Doha, havia um componente importante pressionando o sistema multilateral de comércio: a crescente proliferação de acordos preferenciais estabelecidos entre dois ou mais países. Grande parte desses acordos resultou da iniciativa de países desenvolvidos motivados pelo interesse de preservar as vantagens competitivas advindas da dispersão geográfica da produção. Alguns países em desenvolvimento adotaram estratégia semelhante, tornando-se bastante ativos na negociação de acordos bilaterais. A discussão sobre a proliferação destes acordos foi incluída na agenda de Doha.

Reconhecendo-se a importância determinante dos EUA na criação e na manutenção da OMC, a questão a ser avaliada neste momento de grave impasse no avanço das negociações multilaterais é se, de fato, se trata de uma demonstração inequívoca do desinteresse desse país pelo sistema multilateral de comércio. E se, por decorrência, irá prevalecer, afinal, a linha da liberalização competitiva. Segundo essa visão, a agilidade em lograr acordos preferenciais com os EUA representaria uma maior habilidade de determinados países em perceber e desfrutar as oportunidades oferecidas, formando uma coalizão de vencedores.

Ainda é muito cedo para veredictos definitivos.

Em primeiro lugar, a OMC representa a culminação de um longo processo de construção institucional conduzido pelos EUA, mas com a adesão crescente dos demais países. Além do mais, o sistema multilateral de comércio não contempla apenas a dimensão das negociações comerciais. Não se deve subestimar a importância do órgão de solução de controvérsias. Basta mencionar o fator China para se ter uma medida mais concreta da necessidade de manter uma instância multilateral para equacionar disputas comerciais.

Feitas as considerações acima, a afirmação do diretor-geral da OMC ao suspender as negociações da Rodada Doha de que ¿havia apenas perdedores¿ ganha maior significado. Para o Brasil, em particular, a interrupção de Doha é uma péssima notícia. Os tempos andam difíceis para a política externa brasileira, especialmente a comercial.

Há alguns anos, quando do lançamento da Rodada Doha, o cenário para o Brasil era bem mais promissor. No final da década de 1990, foi elaborada uma complexa estratégia de negociação para liberalização comercial. A prioridade para o Brasil era o sistema multilateral de comércio. Essa decisão estava fundamentada na composição bastante diversificada geograficamente dos interesses comerciais brasileiros e na necessidade de obter melhores condições de acesso aos mercados desenvolvidos para os produtos agrícolas brasileiros. Questões relativas a regras, como propriedade intelectual, antidumping, serviços e investimentos, também seriam mais adequadamente tratadas em âmbito multilateral.

Nessa agenda de negociações estava conjugada uma participação cada vez mais ativa no sistema multilateral com iniciativas de acordos regionais e bilaterais. Dizia-se que o Brasil estaria jogando em quatro principais tabuleiros simultaneamente: OMC-Rodada Doha e contencioso, Área de Livre Comércio das Américas (Alca), União Européia (UE) e Mercosul. A construção dessa agenda era pautada pelo pragmatismo característico da política externa brasileira: prioridade aos parceiros comercialmente mais relevantes e continuidade do processo de integração com os países do Mercosul. É conveniente lembrar que as negociações com os EUA e a UE seriam feitas com o Mercosul.

Após a mudança de governo, em 2003, se a prioridade relativa à OMC foi mantida, a estratégia montada das várias negociações com os parceiros comerciais mais relevantes foi sendo abandonada. Portanto, o fracasso de Doha é lamentável para o comércio internacional, mas muito mais grave para o Brasil.

Se as negociações de Doha forem mantidas suspensas sine die, a julgar pela condução presente da política comercial brasileira, está descartada uma maior inserção comercial negociada com os grandes parceiros comerciais: EUA e UE. Caso a política comercial seja alterada e volte a predominar o pragmatismo, as negociações com os países mais relevantes deverão ser bilaterais. Fato esse que limitará ainda mais a capacidade de obter ganhos expressivos para o País. Não há como imaginar o Mercosul com a Venezuela de Chávez negociando com os EUA, tampouco com outros países desenvolvidos. Seja como for, os negócios com o exterior continuarão a ser feitos. Desde que o crescimento (dos outros) continue e as condições internas não se deteriorem demais, o fluxo de comércio do Brasil deverá ser mantido, ainda que em situação adversa. Uma breve conclusão: mais uma oportunidade perdida.