Título: Os poderes de Kirchner
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2006, Notas e Informações, p. A3

Movido por uma ambição política até há pouco conhecida apenas por uns poucos conterrâneos da Província de Santa Cruz, o presidente argentino Néstor Kirchner conseguiu tornar-se o mais poderoso chefe de governo civil de seu país em toda a história. Tendo sido eleito em 2003 com apenas 22% dos votos, hoje ele controla o Congresso Nacional, praticamente todos os 24 governadores provinciais, inclusive alguns pertencentes a partidos da oposição, e até mesmo o Poder Judiciário. Além disso, tem o apoio de boa parte da mídia.

O domínio de Kirchner sobre o Congresso ficou mais do que evidente com a aprovação pela Câmara de Deputados de uma lei, já aprovada no Senado, que lhe concede amplos poderes para mudar o Orçamento sem consultar o Legislativo. Essa lei ficou conhecida como a dos ¿superpoderes¿, pois dá ao chefe de gabinete da Presidência - ou seja, ao presidente Kirchner - plena liberdade para alterar dotações de um ministério e transferi-las para outro ou reduzir verbas de um programa e ampliar as de outros, sem pedir autorização para ninguém. O Congresso se limitará, no caso do Orçamento, a aprovar ou não o total das despesas proposto pelo Executivo e o nível de endividamento do governo.

Em 2001 e 2002 - apesar da ferrenha oposição da senadora Cristina Fernández de Kirchner, que esta semana liderou a aprovação do projeto -, esses poderes foram conferidos em caráter excepcional ao Executivo, para o governo enfrentar a crise em que o país mergulhara por causa do fim do regime de paridade cambial e da instabilidade política. A lei, aprovada na quinta-feira por 134 votos contra 90, torna permanentes tais poderes.

Há tempos Kirchner vem acumulando importantes vitórias no Congresso. Já obteve a aprovação, pelo Senado, de lei que torna permanente o instituto dos decretos de necessidade e urgência - espécie de medida provisória que Kirchner tem utilizado fartamente e que lhe permite legislar sobre quase tudo. Também conseguiu a aprovação das reformas no Conselho da Magistratura, responsável pela nomeação dos juízes, com o que, diz a oposição, aumentou seu controle sobre o Judiciário.

O deputado oposicionista Mauricio Macri advertiu para o risco representado pelo acúmulo de poderes por Kirchner. O perigo, disse ele, é o de se chegar a um autoritarismo por meios democráticos - como ocorreu na Venezuela de Hugo Chávez. A democracia seria substituída pelo que Macri chama de ¿democradura¿, que mantém a formalidade do voto, mas anula outras instituições democráticas. ¿Neste momento, a Constituição não existe¿, constata ele.

Partidos da oposição pretendem argüir na Justiça a inconstitucionalidade da lei dos superpoderes. Argumentam que a Constituição impede o Executivo, ¿sob pena de nulidade absoluta e insanável¿, de tomar decisões de caráter legislativo e proíbe de maneira expressa o Congresso de conceder ao Executivo, em caráter permanente, poderes caracterizados como extraordinários, como é o caso da liberdade de alterar livremente o Orçamento sem consulta ao Legislativo. A Constituição, além disso, confere ao Congresso a prerrogativa de fixar os gastos orçamentários anuais e determina que o chefe do gabinete deve limitar-se a executar o Orçamento aprovado pelo Legislativo.

É preocupante a indiferença da população com relação à concentração de poderes nas mãos de Kirchner. Com a economia crescendo a um ritmo muito acelerado, o país, como observou Fernando Laborda, do jornal La Nación, parece ter voltado ao tempo da euforia do governo Menem, especialmente entre 1993 e 1995, quando o cenário econômico era róseo. ¿Não se deve colocar pedras no caminho do presidente; é preciso deixá-lo trabalhar, pois a economia está melhorando¿, é o pensamento de boa parte da população.

À indiferença da população soma-se a fraqueza das oposições. Com isso, Kirchner tem agora condições de administrar o Orçamento de acordo com seus interesses eleitorais, mantendo uma sólida base de apoio no Congresso e nas províncias, e esmagando os que podem criar problemas. O quadro eleitoral lhe é tão favorável que o principal tema em discussão nos meios políticos argentinos é quem será o candidato nas eleições do ano que vem: se ele ou se sua mulher, a senadora Cristina Fernández de Kirchner.