Título: O primeiro tropeço de Morales
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/08/2006, Notas e Informações, p. A3

O negócio do petróleo e do gás tem algumas peculiaridades. Por exemplo, para a maioria das pessoas, as grandes empresas petrolíferas são aquelas multinacionais cujos nomes aparecem nas páginas de jornais e revistas e em postos de serviço. Há tempos, falava-se no poder das Sete Irmãs, as empresas que, acreditava-se, controlavam o mercado. Na verdade, as maiores empresas petrolíferas não são essas: são algumas empresas estatais. Das 20 maiores empresas do setor, segundo informa a revista The Economist, 16 são estatais. Elas controlam 90% das reservas de óleo e gás do mundo.

Em geral, essas empresas gigantescas são muito bem administradas. Mas há exceções. Uma delas é a Petróleos de Venezuela (PDVSA), que o coronel Hugo Chávez transformou em instrumento de sua ¿revolução bolivariana¿. Nesse processo, demitiu cerca de 18 mil técnicos e quadros de direção altamente capacitados e, anualmente, retira da empresa de US$ 6 bilhões a US$ 8 bilhões para subsidiar programas assistencialistas - que apenas perpetuam a pobreza da população - e as operações destinadas a afirmar a liderança do antigo coronel golpista na América Latina. O resultado prático da politização da PDVSA está à mostra: as reservas conhecidas não aumentam na medida da necessidade, a produção de petróleo e gás caiu e as instalações não recebem manutenção adequada.

Pois foi justamente esse modelo de ineficiência que o presidente Evo Morales adotou. Mal assumiu a presidência da Bolívia, baixou um ¿decreto supremo¿ nacionalizando todas as atividades relacionadas com petróleo e gás. As empresas privadas que lá operavam, e também a Petrobrás, passariam a funcionar como prestadoras de serviços e suas instalações reverteriam para o controle da Yacimientos Petroliferos Fiscales de Bolívia (YPFB), uma estatal ressuscitada para administrar o setor de hidrocarbonetos.

A nacionalização de atividades nesse setor não é coisa rara, nem assusta investidores acostumados a atuar em ambientes de risco. Esta era, por exemplo, a terceira vez que petróleo e gás eram nacionalizados na Bolívia. O problema foi a brusquidão da medida, adotada por inspiração do coronel Hugo Chávez. Em outros países, a nacionalização passou por longos processos, para que a mudança do regime não afetasse a produção e o fornecimento. Quando o governo da Arábia Saudita nacionalizou a Aramco, por exemplo, estabeleceu um prazo de sete anos para a transferência dos ativos das empresas privadas para o novo controlador estatal. Assim, foram preservados os conhecimentos básicos do negócio - que é sempre complicado - e a chamada ¿cultura corporativa¿, que não se cria do dia para a noite.

Os primeiros resultados da encenação montada pelo presidente Evo Morales, assessorado por Hugo Chávez, para mostrar que uma nova Bolívia estava sendo ¿refundada¿, começam a aparecer. Entre o fim de julho e o começo de agosto, o governo boliviano baixou três medidas - só comunicadas ao público na sexta-feira passada -, suspendendo temporariamente as atividades da YPFB ¿em toda a cadeia produtiva¿. Em outras palavras, a estatal não tem recursos financeiros nem capacidade técnica para cumprir as determinações do tal ¿decreto supremo¿. Não pode pagar indenizações pelas propriedades que na prática confiscou e não consegue administrar as instalações que já ocupou. ¿Para superar essa limitação, gestiona-se junto ao Banco Central um desembolso de US$ 180 milhões, com os quais a YPFB operará em toda a cadeia produtiva¿, esclarece o comunicado oficial. Mas a questão não é apenas de dinheiro. A estatal não tem conseguido nem ao menos administrar os fundos obtidos com a venda de combustíveis, que são recolhidos pelas empresas privadas que ainda operam no ramo a uma conta da YPFB no Banco Central. Com esse dinheiro, a estatal deveria pagar royalties, recolher impostos, reembolsar as companhias por sua porcentagem no negócio e ficar com a sua parte, de 32% do total.

Os problemas da YPFB não se resolverão com US$ 180 milhões. Só em projetos cancelados após o anúncio da nacionalização, inclusive pela Petrobrás, a Bolívia deixou de receber investimentos de US$ 5 bilhões. Os bolivianos começam a aprender, pela pior forma, que bravatas políticas não substituem investimentos e tecnologia e que arroubos ideológicos não tiram um país do atraso.