Título: O seqüestro da democracia mexicana
Autor: Enrique Krauze
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/08/2006, Internacional, p. A23

Para ilustrar o argumento ad terrorem (para aterrorizar) que as ideologias totalitárias utilizavam para impor sua verdade à sociedade, o filósofo polonês Leszek Kolakowski contava uma fábula: duas meninas correm num parque; a que está atrás exclama continuamente, em voz alta, ¿Estou ganhando! Estou ganhando!¿ até que a que está na frente abandona a corrida e se atira aos prantos nos braços da mãe, dizendo: ¿Não posso com ela; ela sempre me vence.¿

Tirando o desfecho, algo parecido está ocorrendo no México. Depois de uma jornada eleitoral livre, ordenada e pacífica na qual votaram 42.249.541 mexicanos cujos votos foram computados em 130.466 sessões eleitorais por 909.575 cidadãos (não funcionários), o candidato do PRD (Partido da Revolução Democrática) à presidência, Andrés Manuel López Obrador, saiu perdedor por uma margem de 0,57%, equivalente a 240.822 votos, ante o candidato do PAN (Partido da Ação Nacional), Felipe Calderón.

Os números do sistema eletrônico de contagem preliminar, avalizado pela Universidade Nacional Autônoma do México, coincidiram com a recontagem final efetuada nos 300 distritos eleitorais que concentraram as atas das seções eleitorais. Fora o resultado adverso na eleição presidencial, no mesmo dia o PRD conseguiu se converter na segunda força do Poder Legislativo (aumentando consideravelmente sua posição nas duas Câmaras), enquanto seu candidato à chefia do governo do Distrito Federal, Marcelo Ebrard, triunfou com 47%.

Como se fosse pouco, o PRD arrasou em quase todos os postos executivos (as delegações em que está dividido o Distrito Federal) e na Assembléia Legislativa do Distrito Federal.

Esta é a realidade atestada por 1.800 conselheiros distritais, 970 mil representantes de todos os partidos, 24.769 observadores nacionais e 639 internacionais. Contudo, e apesar de López Obrador considerar válidas as eleições que produziram triunfos nunca vistos para seu partido, ele não aceita sua derrota pessoal. Dada a estreita margem da eleição presidencial, ele resolveu exercer seu direito de impugnar os resultados no Tribunal Federal Eleitoral (Trife). Será essa instância final e inapelável que decidirá, num prazo cuja data limite é 6 de setembro, quais irregularidades reclamadas são válidas, em quais sessões eleitorais procede uma recontagem dos votos, e qual é o resultado final da eleição presidencial.

Se o candidato do PRD houvesse se limitado a instrumentalizar essa estratégia jurídica, sua atitude não teria prejudicado inadmissivelmente o processo eleitoral, nem solapado a frágil democracia mexicana. Mas, como era previsível, ele não podia conformar-se com a estratégia legal, que ele mesmo chamou, depreciativamente, de ¿formal.¿ Tinha de recorrer ao argumento ad terrorem para conseguir seu propósito.

Como a menina do conto, sabedor desde o 2 de julho à noite que as tendências não o favoreciam, ele compareceu à praça central da capital para declarar: ¿Ganhamos a presidência da república.¿ Dias mais tarde, depois da recontagem oficial que fez no mesmo sentido o Instituto Federal Eleitoral (IFE, órgão autônomo), López Obrador congregou o ¿povo¿ para uma ¿assembléia¿, na qual chamou o presidente Vicente Fox de ¿traidor da democracia¿, e utilizou a palavra mais aziaga do dicionário político mexicano: ¿fraude.¿

Essa desqualificação da instituição eleitoral (que acabava de dar o triunfo a centenas de seus candidatos) e os seus discursos incendiários, até culminar num chamado ¿à resistência civil¿, representam uma tática nada ¿formal¿; representam precisamente o recurso ad terrorem aplicado com enorme risco para a paz do México.

Além de se proclamar vencedor, insultar Fox, ameaçar Calderón e sua família, chamar de delinqüentes os funcionários do Trife, considerar-se traído por membros do próprio partido e antecipar-se ao veredicto do tribunal, López Obrador lançou mão de um repertório digno de romance de Orwell. Irregularidades isoladas, presumidas e, de qualquer forma, não orquestradas pelo Trife, são apresentadas ao público como evidência cabal de que todo o processo foi viciado, ignorando o testemunho dos observadores estrangeiros e de milhões de mexicanos.

O dano causado a nossas instituições eleitorais pode ser irreversível. Ante a descarga ad terrorem, que cidadão se disporá no futuro a participar de uma sessão eleitoral? Ele já não conclama somente a ¿defender o voto¿ mas sim a ¿purificar¿ e ¿transformar¿ as instituições do Estado. Embora venha insistindo em que as marchas serão ¿pacíficas¿ e ¿não cairão em provocações¿, ele sabe muito bem que no atual ambiente de extrema polarização, a provocação pode vir de qualquer lado. Para avaliar suas intenções não é preciso ser um adivinho, pois ele as expressou com todas as letras, e é preciso acreditar: jamais aceitará um resultado adverso, nem dos votantes, nem do Tribunal Eleitoral; ele ¿ganhou a presidência¿ e irá ¿tão longe quanto a gente quiser.¿ ¿A gente¿, ¿o povo¿, não são, por princípio, os 27.493.191 cidadãos de todas as classes que não votaram nele; nem sequer os 14.756.350 que o apoiaram nas urnas. ¿A gente¿, ¿o povo¿, são aqueles que ele pode mobilizar nas ruas e praças do país, e que o vêem como ele próprio se vê, como o Messias do México. O mundo já viu esse filme muitas vezes. É o ovo da serpente ditatorial. Um homem impermeável à verdade objetiva, um Messias que se proclamou ¿indestrutível¿, pretende seqüestrar a democraciae, se não obtiver o resgate, incendiar o país.

Mas numa democracia (e o México é agora uma democracia, ainda que sua longa história se empenhe em desmenti-lo) não são os fachos acesos, os comitês de saúde pública, nem os líderes iluminados que decidem: é o voto cidadão, é o império da lei.