Título: Cuba voltará a ser república de bananas
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/08/2006, Internacional, p. A24

O sociólogo francês Alain Touraine não está tão preocupado como a sucessão de Fidel Castro e a transição em Cuba, com ou sem Raúl Castro, mas sim em evitar o aumento da influência do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na América Latina. Diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e membro da Academia de Ciências de Nova York, especialista em América Latina, Touraine concedeu entrevista ao Estado. A seguir, os principais trechos.

Que conseqüências políticas terá, para a América Latina, a saída de cena de Fidel Castro?

A situação mudou muito no continente. Se me fizessem essa pergunta há dois ou três anos, diria que o desaparecimento de Fidel não causaria nenhum problema. Mas hoje existe o problema Chávez e a situação é bem mais complicada. Não acredito na possibilidade do regime sob outra liderança, mas também não acredito na tomada do poder pelos cubanos de Miami, que estão muito comprometidos com a vida americana. Sempre pensei na possibilidade de Cuba adotar o modelo da América Latina. Depois de passar por uma sovietização, agora que a União Soviética não existe, não há razão para que não haja uma nova latino-americanização de Cuba. Continuo defendendo essa evolução, mas o problema é Hugo Chávez. O apoio que vinha da União Soviética hoje vem do petróleo de Chávez. Há um circuito que todos conhecem. A Venezuela recebe importante apoio nas áreas de educação e saúde de Cuba e, em contrapartida, vende seu petróleo para Cuba pela metade do preço.

Essa nova reintegração de Cuba à América Latina se daria através da Venezuela de Chávez e da Bolívia de Evo Morales?

Tente imaginar que Chávez possa estender sua influência e a Bolívia faça parte desse conjunto. Nesse caso, teríamos uma América Latina que mais do que antes terá de tratar com a tendência radical e extremista do tipo Fidel ou Chávez. Essa é uma transformação profunda e o herdeiro de Fidel nesse momento não é Raúl, mas sim Chávez. Essa será uma evolução de extrema gravidade. Por isso, defendo a tese de que é preciso evitar a extensão da influência de Chávez e que a Bolívia seja inteiramente dominada por ele. Isso é possível, pois a Bolívia tem questões específicas e uma das principais é a do gás, cuja dimensão é continental. Quanto ao Brasil, sabemos que o país não está contente com as perdas da Petrobrás causadas pela nacionalização do gás boliviano. É essencial para o Brasil procurar compreender que há coisas mais importantes do que um pouco mais de lucro de sua companhia de petróleo. É ainda mais importante, neste momento em que se fala do afastamento de Fidel, que a América Latina compreenda que a prioridade é a aceitação da Bolívia tal como ela é pela comunidade latino-americana, evitando que ela possa ser lançada nos braços de Chávez.

Será que, de certa forma, ela já se encontra nos braços de Chávez?

Sim e não. Ela é ajudada financeiramente, mas eu não acredito, mesmo que aparentemente essa seja uma verdade. Também a Argentina tem sido enormemente ajudada por Chávez, mas não está nos seus braços. Eu disse a Néstor Kirchner recentemente que um grande país como a Argentina não pode aparecer aos olhos do mundo como dependente de um país produtor de petróleo de segunda ordem, como é o caso da Venezuela. Não acho que Kirchner se sinta muito próximo politicamente de Chávez.

O sr. acredita que o trio formado pela Venezuela, Bolívia e Cuba possa se opor politicamente a um trio formado por Chile, Brasil e Argentina?

Não aceito incluir a Bolívia nesse grupo. A Bolívia é um país com tradição social, política, revolucionária. Um país muito pobre e humilhado, com alto nível de mobilização e violência política. Ninguém deve dizer que a Bolívia é uma colônia de Chávez.

Há uma situação ainda de indefinição então, pois ninguém sabe como será a transição cubana.

Tudo indica que a transição vai permitir negociar em posição de força a volta das empresas estrangeiras, em particular do setor do turismo. É isso o que vai ocorrer e Cuba voltará a ser uma república de bananas, quase exclusivamente turística, que andará de mãos dadas com a prostituição.

Uma evolução nessa direção não poderá gerar reações internas, seja contra Raúl ou quem estiver no poder após Fidel Castro?

A tendência principal, quando um país atravessa um regime tão esmagador e longo, é dizer que sua capacidade de ação interna é limitada. Creio que será em direção de Raúl que os anticastristas vão evoluir, o que não me impede continuar imaginando o fim do regime castrista. A reintrodução dos anticastristas, os que estão em Cuba ou no exílio (exceto os de Miami), será inevitável.

O sr. acredita numa abertura do governo Bush para Cuba após Fidel?

Não será Bush que fará uma abertura em direção a Cuba, mas sim Cuba que vai procurar sair dessa indefinição. Evidentemente, Bush e os outros não farão nada com Raúl no poder. Essa será uma fase de transição, menos de transição política, mas sim de business. Saber quem serão os dirigentes das empresas de turismo canadenses, espanholas, os investidores, etc... Tudo isso vai se passar num nível baixo pela simples razão de que Cuba está num nível baixo, não só político, mas também intelectual, nada a ver com o que esse país produziu no passado nessa área. Quanto mais rápida for a transição, melhor será.

O fim de Fidel poderá ser semelhante ao do general Franco, da Espanha, cuja saúde foi se deteriorando progressivamente, mas com tempo para organizar a transição?

Quando Franco morreu, em 1975, ele já havia feito a reforma econômica nos anos 60. A Espanha já havia decidido entrar na Europa havia 15 anos e já vinha sendo profundamente transformada, razão pela qual a morte progressiva de Franco não teve muita importância. A diferença é que o país havia se desenvolvido nos últimos dez anos antes da sua morte, o que não é o caso de Cuba. Neste caso, a evolução foi mais uma involução, o país andou para trás, vivendo do turismo, da prostituição, etc. Depois de tudo o que foi dito sobre o regime de Batista, o que assistimos atualmente é um pouco uma volta àquela situação.

O regime poderá sobreviver muito tempo sem Fidel?

Não sei qual será a saída, mas a idéia de que possa continuar com Raúl me parece irrealista. Raúl controla o aparelho, em particular os militares, mas não tem o carisma e a função histórica de seu irmão.

Que comportamento terá a Europa em relação a uma Cuba pós-Fidel?

Cuba não existe para a Europa, talvez um pouco para a Espanha. Não tenho dúvida de que a Europa está contente com a perspectiva do desaparecimento de Fidel. O aspecto ideológico pertence ao passado. Os europeus irão a Cuba por turismo, e os hotéis vão cobrar 50 dólares a mais para que os turistas possam ver as lembranças de Che Guevara. É triste, mas é verdade. Depois de todas essas décadas e do fim do bloco soviético, Cuba não pesa mais nada. De 15 anos para cá, Fidel conseguiu conduzir seu país ao que ele era antes.

Esse país poderá ter ainda uma vocação política após Fidel e manter uma certa influência no exterior?

Não. Cuba vai se transformar no contrário do que foi. Ela foi uma sociedade dominada por um forte progresso político, mas será dominada daqui para a frente por frágeis progressos econômicos. Mas para que a transição possa ser tranqüila, Raúl e os novos dirigentes deverão liberar os prisioneiros políticos e garantir as liberdades básicas.