Título: Morre o ator Raul Cortez
Autor: Beth Néspoli
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/07/2006, Caderno 2, p. D1

Morreu ontem às 20h15, aos 74 anos, o ator Raul Cortez, no Hospital Sírio-Libanês, onde estava internado desde o dia 30, em função de complicações relacionadas a um câncer na região abdominal. Ainda na noite de ontem, seu corpo começou a ser velado no Teatro Municipal de São Paulo.

A carreira de Raul Cortez é marcada por uma interessante conciliação entre facetas que costumam atritar-se. Conseguiu ser ao mesmo tempo artista ousado, meter-se em projetos libertários, e também engajado, mas também cultivar a imagem de artista do chamado `teatrão¿ e fazer sucesso popular na televisão. Uma dessas conciliações ocorreu em 1980, quando a um só tempo ele brilhava, e recebia prêmios, no papel do velho militante de esquerda Manguary Pistolão da peça Rasga Coração, de Vianinha, recém-liberada pela censura, e era admirado por milhares de espectadores da novela Água Viva, que vibravam com sua criação para o cirurgião plástico Miguel Fragonar.

De família rica, começou por contrariar os pais para ser ator. Fez uma `incompreendida¿ atuação/performance em 1969, encarnando um travesti em Os Monstros, sob direção de Denoir de Oliveira; em 1970, ousou com o primeiro nu masculino no teatro brasileiro na famosa montagem de O Balcão, dirigida por Victor García; atuou sob direção de Zé Celso no Oficina, tanto na sua primeira fase áurea, na década de 60, em montagens antológicas como Os Pequenos Burgueses, quanto na volta do diretor exilado, num Oficina destroçado, em As Boas, de Jean Genet.

Também atuou mais de uma vez sob direção de Antunes Filho, em peças como Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, interpretação que lhe valeu os prêmios Molière, Mambembe, APCA e Apetesp, e Vereda da Salvação. Nunca escondeu sua admiração inconteste, jamais abalada, por esses dois diretores expoentes do teatro brasileiro, de linguagens tão díspares. Com muitos prêmios no currículo, depois de ter imprimido seu nome definitivamente na história do teatro brasileiro, decidiu fazer o `seu¿ Rei Lear, ambição comum à carreira dos grandes atores. Mas também ousou levar ao seu público a dramaturgia contestadora de Mario Bortolotto, mantendo a dualidade, e a inquietação, que seriam marcas de sua vida artística. Raul Christiano Machado Cortez nasceu no dia 28 de agosto de 1931, em Santo Amaro, quando esse bairro paulistano ainda era um município, e já tivera como prefeitos seu pai e seu tio. Sua rebeldia se manifestaria muito cedo. Na adolescência, arrumou um emprego para ficar independente do pai. Estudante de Direito, passou a freqüentar o famoso Nick Bar, vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Ali conheceu Ítalo Rossi, que o levou ao Teatro Paulista do Estudante, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e Gianfrancesco Guarnieri, onde estreou, sob direção de Ítalo, em O Impetuoso Capitão Tick, em 1955. Pouco depois, faria um teste para o TBC e enfrentaria seu primeiro fiasco. A história é engraçada. Por sua bela voz, o então rapaz espigado - 1,81 m de altura - seria escolhido para um efeito `sonoro¿ especial em parceria com Cleyde Yáconis. Nos ensaios, tudo bem. Mas no dia da estréia, ficou mudo de nervoso e Cleyde falou sozinha. Por conta disso, ficaria quatro anos fazendo praticamente figuração no TBC. Finalmente saiu da `geladeira¿ e seu talento começou a brilhar ao substituir Leonardo Villar no papel de Biff, em A Morte do caixeiro-viajante.

Nesse período, atuou sob direção de Antunes no Pequeno Teatro de Comédia em O Diário de Anne Frank. Na Cia. Cacilda Becker, viajou para a Europa com um repertório bastante eclético, como era comum na época, que ia de Maria Stuart, de Schiller, passando por Santa Marta Fabril S. A., de Abílio Pereira de Almeida, até A Compadecida, de Ariano Suassuna. Sob direção de Antunes atuou em Yerma, de Lorca; sob a de Ziembinski, em Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues. Em 1963 já ganhava o APCA de ator coadjuvante por sua atuação em Os Pequenos Burgueses, sob direção de Zé Celso. ¿Foi uma montagem inédita no teatro brasileiro¿, diria Cortez anos depois. ¿Os Pequenos Burgueses tinha o poder que o teatro deve ter de mudar o comportamento das pessoas. Jovens, estudantes, as pessoas que assistiam a essa montagem mudavam de vida.¿

Em teatro, dizia gostar dos personagens loucos e lúcidos que se revoltam, como Joaquim de Vereda da Salvação, mais um dos que criou sob direção de Antunes Filho. Mas também era capaz de se apaixonar pelo travesti da comédia Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá. ¿Gostava da tristeza dessa peça e do meu personagem¿, dizia sobre esse travesti pobre, que vivia no subúrbio carioca e era fã da atriz que dá título à peça.

Cortez foi um dos fundadores da Apetesp, em 1974, e também seu presidente, durante muitos anos. Em 1979, quando estreou em Rasga Coração, de Vianninha, tinha 48 anos e uma carreira repleta de prêmios teatrais. Havia levado ao palco personagens de Edward Albee, Molière, Lorca, Jean Genet, Gorki, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e muitos outros. Também já havia atuado em novelas como O Enigma, na Bandeirantes, entre outras.

Mas foi no início da década de 80, com Rasga Coração ainda em cartaz, que sua popularidade na telinha explodiu por conta de sua atuação na novela Água Viva, sua primeira na Globo. Começa então uma série de sucessos, como o volúvel Herbert de Brega & Chique, o Pedro Bergman de Mandala, o Virgílio de Mulheres de Areia. Um deles, porém, o Geremias Berdinazzi de O Rei do Gado, chegaria a roubar o lugar do protagonista no gosto do público.

Sucesso televisivo, no seu caso, não significou interrupção nos palcos. Muito depois de Água Viva, em 1986, novamente sob direção de Antunes, faria A Hora e a Vez de Augusto Matraga, inspirado em Guimarães Rosa. E muito mais. Ele seria o Paulo Prado de O Lobo de Ray-Ban, peça de Renato Borghi; Salieri, o antagonista na peça Amadeus; a madame da peça As Boas, de Jean Genet; Ah! Mérica, uma colagem de poesias e músicas por ele escolhidas; Rei Lear, na montagem para a qual ele convidou a dirigir Ronaldo Daniel, que hoje vive em Londres, com que havia atuado no Oficina no início da carreira, e ainda se arriscaria em À Meia-Noite Um Solo de Sax na Minha Cabeça e Fica Frio, duas peças de Bortolotto que levaria ao palco, expondo-se corajosamente ao fogo cruzado da crítica tanto de seu público mais tradicional quanto dos admiradores do autor aplaudido, sobretudo, pelo espectador arredio ao circuito dos teatros de veludo vermelho e poltronas confortáveis. Nesse momento, quando muitos de sua geração levavam ao palco confortáveis solos no estilo `balanço de carreira¿, Raul Cortez mostrava jamais ter deixado morrer a chama do jovem rebelde que contrariou a família para tornar mais interessante o teatro brasileiro.