Título: OMC - Do(h)a a quem doer....
Autor: Antonio Corrêa de Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/08/2006, Economia, p. B2

O colapso iminente das negociações da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) põe em xeque o papel dos órgãos multilaterais pós-Bretton Woods, diante da (des)ordem mundial. No caso da OMC, criada em 1995, como sucessora do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), isso fica ainda mais evidente.

Ao contrário dos seus congêneres para outros temas, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), a OMC foi criada no auge da globalização. Ou seja, no caso, nem sequer se tem a desculpa de ela ter sido criada anteriormente às profundas mudanças na economia no final do século 20, como no caso dos demais.

O fato é que a estratégia de internacionalização das empresas, a formação de blocos econômicos e os acordos bilaterais das últimas duas décadas fomentaram a intensificação do comércio exterior. O volume global de exportações quadruplicou nos últimos dez anos, passando de US$ 2 trilhões em 1995 para mais de US$ 8 trilhões em 2005.

Ao mesmo tempo que o comércio exterior mundial crescia, ampliavam-se as contradições agravadas pela incapacidade de mediação e regulação por parte da OMC. Há, em contrapartida, a proliferação dos acordos bilaterais diretamente entre países. Esses acordos mais ligados a interesses comerciais mais específicos e imediatos, por outro lado, não substituem as questões de ordem multilateral, geralmente as mais complexas e de desdobramentos de médio e longo prazos.

Há pelo menos duas contradições básicas no sistema multilateral de comércio. A primeira é que, apesar do discurso globalizante e liberal dos países ricos, prevalece um quadro de protecionismo, ou prote-cinismo, se criarmos um neologismo. Nesse cenário, o pregado comércio livre só vale para os outros. Os demais países são sempre cobrados por maior abertura dos seus mercados.

Os países do G-7 continuam subsidiando direta e indiretamente seus produtos e impondo barreiras tarifárias e não tarifárias, essas não raras vezes travestidas de "medidas fitossanitárias", entre outras praticadas. A OCDE estima que os países do G-7 concedam subsídios aos seus produtores de cerca de US$ 350 bilhões ao ano!

A segunda contradição está no ingresso da China no mercado. Os chineses adotam práticas que seriam claramente classificadas de desleais e predatórias ao meio ambiente, aos direitos humanos, à propriedade intelectual e de patentes, entre outros. Para agravar ainda mais a distorção, praticam o que poderíamos chamar de um "dumping" cambial. Uma taxa de câmbio artificialmente hiperdesvalorizada, provocando distorções graves no comércio e na localização de investimentos. Ou seja, a emergência da China tem muito pouco que ver com as práticas de uma economia de mercado.

Apesar disso, a mais ampla e democrática discussão dos temas de ordem multilateral das relações econômicas entre os países continua sendo mesmo o fórum da OMC. Doa a quem doer, só haverá avanços de fato quando houver entendimento mínimo entre os atores do processo e o aprimoramento e fortalecimento do órgão supranacional. Isso necessariamente abrange o comprometimento das principais lideranças globais, incluídos aí, além do G-7, os novos "emergentes", com destaque para o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China).

Para o Brasil, especialmente, o imbróglio das negociações não é favorável, uma vez que o acesso aos mercados dos países ricos permanece dificultado. Vale destacar, no entanto, que a situação atual é melhor do que um desdobramento de eventual avanço das negociações que implicasse perda de mercados, por exemplo, por concessões exageradas nas áreas de indústria e serviços.

Diante do complexo quadro das negociações multilaterais, a pior alternativa brasileira seria insistir em equívocos que só dependem de nós mesmos, como na valorização excessiva da taxa de câmbio e na ausência de estratégias de desenvolvimento. Enfrentar a concorrência predatória dos chineses e o protecionismo subsidiado dos países ricos com o câmbio valorizado não é certamente a melhor alternativa. Da mesma forma, para além da competitividade mundial em que prevalece a intervenção é fundamental definir e implementar uma clara estratégia de desenvolvimento - um Projeto Nacional.