Título: Invasão israelense, guerra síria
Autor: Michel Young
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2006, Internacional, p. A16

A incursão de Israel no Líbano depois do seqüestro, na quarta-feira, de dois soldados israelenses pelo grupo militante Hezbollah vai muito além de mais um incidente numa fronteira tensa. Ela também pode ser vista como subproduto de um contra-ataque geral contra o poder americano e israelense na região por parte do Irã e da Síria, operando por intermédio de agentes não-estatais, como o Hezbollah e a organização palestina Hamas.

Se os Estados Unidos e seus parceiros do Conselho de Segurança da ONU forem inteligentes, porém, eles poderão usar esta crise para promover seus objetivos de segurança no Oriente Médio e ajudar o Líbano a sair de seu pântano político.

Isto não significa que o ciclo de ataque e retaliação entre o Hezbollah e Israel seja apenas uma guerra por procuração. Há muito que os dois lados estão envolvidos num conflito no sul do Líbano - embora, desde que Israel se retirou da região, em 2000, esse conflito estivesse em grande medida limitado a um território disputado conhecido como Fazendas de Shebaa e balizado por regras não escritas. Na semana passada, porém, o Hezbollah transgrediu três linhas políticas.

A primeira foi a expansão de suas operações militares para fora da área de Shebaa. Embora o Hezbollah já tenha feito isso antes - inclusive matando alguns soldados israelenses -, a operação recente seria certamente intolerável para um governo israelense já às voltas com o seqüestro de outro soldado, o cabo Guilad Shalit, pelo Hamas em Gaza.

Uma segunda linha que o Hezbollah cruzou foi ter atuado com uma evidente coordenação estratégica com o Hamas; nisto ele foi muito além de seu objetivo declarado de simplesmente defender o Líbano e deixou Israel sentindo que travava uma guerra em duas frentes.

Uma terceira linha cruzada foi doméstica. Ao conduzir unilateralmente o Líbano a um conflito com Israel, o Hezbollah tentou encenar um golpe de Estado contra a maioria parlamentar e governamental anti-síria, que se opõe à atitude aventureira do grupo militante.

O Hezbollah ocupa assentos entre os 128 membros do Parlamento, mas tem um relacionamento incômodo com a maioria, que está na defensiva porque a Síria vem procurando reafirmar seu controle sobre o Líbano depois da retirada de suas forças militares no ano passado. O Hezbollah esperava humilhar os políticos anti-sírios, obrigando-os a endossar os seqüestros e mostrando o pouco controle que o governo tem sobre o partido.

Israel deseja que o Líbano pague um alto preço por sua ambigüidade ante o Hezbollah: ele impôs um bloqueio por ar e por mar, e está lançando ataques aéreos até o interior do Líbano, incluindo vários ao aeroporto de Beirute. Intencionalmente, porém, Israel não mencionou a faceta regional da crise. Autoridades israelenses deixaram a Síria fora de suas condenações, em flagrante contraste com as declarações da administração Bush que ressaltaram corretamente a responsabilidade síria e iraniana pelo comportamento do Hezbollah.

O Irá há muito vem financiando o Hezbollah, é claro, e na quinta-feira o governo israelense manifestou sua apreensão de que os dois soldados seqüestrados pudessem ter sido levados para Teerã. Mas a Síria é o nexo da instabilidade regional, fornecendo abrigo a muitos dos mais intransigentes militantes palestinos, transferindo armas para o Hezbollah, e solapando a frágil soberania do Líbano.

Israel pode brutalizar o Líbano quanto quiser, mas a menos que algo seja feito para impedir o presidente da Síria, Bashar Assad, de exportar instabilidade para fortalecer seu despótico regime, pouco mudará.

Quando os israelenses encerrarem sua ofensiva, o Hezbollah se reagrupará e continuará mantendo o Líbano refém com sua milícia, possivelmente a força mais eficaz do país. Líderes do Hamas em Damasco continuarão tentando impedir qualquer negociação entre israelenses e palestinos. E a Síria continuará corroendo a independência libanesa, revertendo os ganhos do ano passado, quando centenas de milhares de libaneses marcharam contra a hegemonia síria.

Seria uma atitude muito inteligente de Israel e dos EUA aproveitar-se de que o Hezbollah talvez tenha extrapolado. O ânimo popular aqui em Beirute é de ódio extremo pelo fato de o grupo ter provocado um conflito que o Líbano não pode vencer. A temporada de turismo de verão, uma rara fonte de receita em um país financeiramente estrangulado, foi arruinada. Mesmo os principais defensores do Hezbollah, os muçulmanos xiitas do sul, não podem estar felizes vendo suas cidades e aldeias mais uma vez transformadas em campo de matança.

O que fazer? Ainda que a ONU tenha sido ineficiente em seus esforços de paz no Oriente Médio, ela poderá ser o organismo certo para intervir neste caso, quando menos porque dispõe do porrete da Resolução 1.559 do Conselho de Segurança, que foi aprovada em 2004 e, entre outras coisas, pede o desarmamento do Hezbollah.

Os cinco membros permanentes do CS, talvez na reunião do G-8 que está ocorrendo neste fim de semana, deveriam estudar uma iniciativa mais ampla baseada na resolução, que incluiria: uma proposta de recolhimento gradual de armas do Hezbollah; garantias escritas de Israel de que respeitará a soberania libanesa e retirará suas forças da terra libanesa contestada nas Fazendas de Shebaa; e a libertação de prisioneiros de ambos os lados. Um acordo desses poderia encontrar respaldo entre políticos anti-sírios do Líbano, reduziria substancialmente a capacidade de o Hezbollah justificar a retenção de suas armas, e também enviaria um sinal à Síria e, particularmente, ao Irã, de que a região não está a seu dispor.

Algo importante: nenhum governo libanês pode ajudar legitimamente a promover um plano como esse se Israel tentar, como disse o chefe de seu Estado-Maior, "atrasar em 20 anos o relógio do Líbano". Israel deve sustar seus ataques e deixar que a diplomacia assuma.