Título: Homenagem de Orwell à Espanha
Autor: Beatriz Coelho Silva
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2006, Internacional, p. A20

Há 70 anos começava a Guerra Civil Espanhola, um conflito que durou apenas três anos, mas marcou toda uma geração dentro e fora da Europa. A Espanha do final dos anos 30 acabou se tornando o palco do enfrentamento das principais ideologias do século 20. A guerra começou em 18 de julho de 1936, quando o general Francisco Franco deu um golpe de Estado para pôr fim à república proclamada cinco anos antes com um projeto de modernizar o país, ainda com resquícios de feudalismo e mesmo da Inquisição.

Após o anúncio de que Franco tinha abandonado seu posto nas Canárias, houve um racha em cada região, em cada grande cidade espanhola. Dentro do campo republicano, lutavam anarquistas, stalinistas, trotskistas, socialistas e democratas. Ao lado de Franco encontravam-se monarquistas, fascistas, anticomunistas e católicos fervorosos. Nem todos eles espanhóis. Essa foi outra característica marcante dessa guerra que atraiu milhares de voluntários estrangeiros, entre eles George Orwell.

Esse aniversário quase passaria em branco no Brasil, não fosse o lançamento de Lutando na Espanha (Editora Globo, R$ 45,00), que reúne os principais textos do autor de 1984 e Revolução dos Bichos sobre o conflito que resultou numa ditadura que duraria quatro décadas. A edição reúne os dois livros sobre sua passagem pelo front e por Barcelona, Homenagem à Catalunha e Recordando a Guerra Civil Espanhola. São relatos de um confronto-chave entre esquerda e direita, tão contundentes quanto o quadro Guernica, em que Pablo Picasso desenhou o terror de um bombardeio ocorrido no País Basco, naquele mesmo conflito.

"O que diferencia esta edição é o respeito à última vontade do autor, expressa por escrito. Ele transformou em apêndices dois capítulos em que mapeia o cenário político da guerra. Com isso, alterou o gênero de literatura. Antes, era um misto de romance, reportagem e análise política. Depois, adquiriu uma estrutura romanesca, embora conte uma história real", adverte o organizador do livro, Ronald Polito, historiador e poeta especialista em traduzir escritores espanhóis e catalães. Além dos dois livros, há 25 textos avulsos sobre sua passagem pela Espanha, a maioria inédita em português.

Homenagem à Catalunha (aqui sempre editado com o título Lutando na Espanha) é o relato apaixonado de um inglês intelectual e aristocrata, que vai à Espanha como correspondente de guerra e, no dia da chegada, alista-se nas milícias do Partido Obreiro da Unificação Marxista (Poum).

Orwell chega à Catalunha, no fim daquele ano e permanece quatro meses no front e mais alguns em Barcelona, capital da revolução. Só que a guerra que encontrou não era a de seus sonhos de heroísmo, "de matar um direitista". Aos 33 anos, se alista em um exército em que o ardor revolucionário não supre a falta de armamentos ou de experiência em combate. "Os recrutas eram na maioria garotos de 16 ou 17 anos, da periferia de Barcelona, mas completamente ignorantes do significado da guerra", escreve ele logo no primeiro capítulo. "Era impossível até mesmo fazê-los permanecer em fila... Se um homem não gostasse de uma ordem, saía das fileiras e discutia ferozmente com o oficial."

Mas o carinho por aqueles companheiros impregna o relato, mesmo quando Orwell se irrita com os hábitos espanhóis, em geral, e catalães, em particular. Ele se admira com as mudanças nas relações sociais em Barcelona, nos meses iniciais da revolução, exalta a generosidade dos revolucionários e, mesmo quando fica claro que aquele projeto se esfacelaria, que aquela revolução morreria logo, faz sua profissão de fé no socialismo. Manteria esta posição até a morte, apesar da condenação à Revolução Russa, que naquela década de 30 tinha Josef Stalin como líder. Por sinal, foi na Catalunha que Orwell sentiu na pele a força dos stalinistas. Grupos sob a influência direta de Moscou perseguiram de forma implacável vários membros do Poum.

O pessimismo de 1984 e Revolução dos Bichos não está nos dois livros principais, embora ambos sejam relatos de uma derrota. Uma narrativa que prende o leitor como um thriller, na qual Orwell descreve, como um mestre, pessoas, lugares e batalhas (as poucas que acontecem), cita números e nomes envolvidos no conflito e faz a emoção transbordar o tempo todo. "Como gênero literário, é vanguardista, faz um jornalismo que só se tornaria comum nos anos 70, em que o repórter se envolve com o fato, sem perder a objetividade", diz o organizador do livro.

Polito acredita ainda que, a Guerra Civil Espanhola foi um laboratório para os dois best-sellers de Orwell. "Há referências claras, quando ele confessa seu horror a ratos, o mesmo expediente usado para derrotar os protagonistas de 1984", diz Polito.

TRECHO DO LIVRO

"Havia sempre entre nós certa porcentagem que era totalmente inútil. Garotos de 15 anos eram trazidos pelos pais para se alistar, sem esconder que o faziam por causa do soldo do miliciano, dez pesetas por dia, e também por causa do pão que a milícia recebia em quantidade e que podia ser contrabandeado para a casa dos pais."