Título: Na Vila Madalena, o cabeça do PCC
Autor: Bruno Paes Manso
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2006, Metrópole, p. C1

Bares, boemia, cultura de vanguarda. Se Nova York tem no Village seu reduto, São Paulo tem a Vila Madalena. Foi lá, na zona oeste, na quarta-feira, que o selo Demônio Negro lançou o livro artesanal 12, com autores da nova literatura paulistana, no bar Mercearia São Pedro, na Rua Rodésia. Coisas da Vila.

Enquanto isso, a alguns quarteirões dali, um ônibus era incendiado na esquina das Ruas Fidalga e Aspicuelta. À primeira vista, nada mais distante do espírito da Vila do que a investida do crime organizado.

Mas é lá, na Vila, que nasceu, cresceu e apareceu para o mundo do crime Rogério Jeremias de Simone, de 29 anos, o Gegê do Mangue, considerado hoje o segundo homem na hierarquia do temido Primeiro Comando da Capital. Graças a um componente que costuma vir associado a bares, boemia, cultura de vanguarda: drogas. Tanto na Vila como no Village.

Nos anos 90, quando a música eletrônica ainda era uma onda que começava, a Torre do Dr. Zero, na Mourato Coelho, era um reduto de iniciados. Jornalistas, VJs, DJs, publicitários, produtores culturais, escritores e descolados se encontravam em bares como Matrix, Super-Bacana, Jungle, Borracharia, Brancaleone, para trocar idéias, dançar, ver, ser visto.

Difícil era entrar no banheiro dessas casas, porque a fila não andava. A cocaína, batida com gilete na tampa da privada antes de ser cheirada (o que a galera chama de "caratê boliviano"), garantia o pique nas noitadas. "Vanguarda, aqui como em qualquer lugar, sempre esteve ligada ao consumo de drogas. Uma balada sem dealer (traficante) não tem graça", diz A.C., produtora cultural que freqüenta a noite da Vila.

Quem ganhou dinheiro e poder com essa sede por novas experiências foi Gegê do Mangue. Era o "patrão". Nos anos 90, antes de Gegê ser preso, a boca funcionava no Mangue, favela que existe na Vila desde os anos 60, entre as Ruas Fradique Coutinho, Fidalga e Rodésia. Ele e outros meninos ficavam nas esquinas durante a madrugada, tocando uma espécie de drive-thru de drogas.

Na balada, bastava baixar no quarteirão, dizer a droga que se queria, dar uma volta na quadra e pegar a encomenda. "Não tinha erro. Quando não se conseguia no Mangue, logo ao lado tinha a boca da Rua Djalma Coelho. Em uma delas, sempre era possível se arrumar", lembra P., morador do bairro, médico.

Formada por uma mistura de imigrantes portugueses, operários e estudantes, a Vila ganhou fama de bairro alternativo ainda na década de 60. Nos anos 50, a construção dos Cemitérios São Paulo e do Araçá fomentou o crescimento da Vila, juntamente com a imigração de portugueses da região do Minho. "Até hoje, quando rezo as missas, ouço um 'Ai, Jesus' de uma ou outra criança descendente desses imigrantes", conta o padre Pedro Antônio, da Igreja Santa Maria Madalena e São Miguel Arcanjo, na Rua Girassol.

Nos anos 60, com a criação da Cidade Universitária, as casinhas da Vila viraram moradia para os estudantes da Universidade de São Paulo. Abriram-se os bares, mecas da contracultura, com intermináveis debates regados a cerveja e maconha. "Eram hippies, comunistas, portugueses, sambistas, trabalhadores, que sempre conviveram em harmonia aqui no bairro. Esse convívio, por sinal, sempre foi um de seus pontos altos", diz o presidente do Partido Verde na cidade, José Luiz de França Penna, morador do bairro e organizador da Feira da Vila.

Nos anos 80 e 90, a Vila foi sitiada pelos bares. O Empanadas, na Wisard, e o Sujinho, na Fradique, são dessa fase. As bocas começam a ter um movimento mais intenso, fomentado por clientes vindos de fora.

Essa é a época de João Carlos Mendes dos Santos, o João do Mangue, de 36 anos, nascido e criado na Vila. Apesar de vender drogas, ele conseguia se relacionar em diversas esferas. Era conhecido por gente da Igreja, líderes políticos e sambistas da escola local, a Pérola Negra, onde chegou a compor letras de música.

Por causa dos negócios, João voltava e meia ia preso. Hoje, só o que se sabe é que está solto. A última prisão aconteceu em 2004, quando foi detido em flagrante com um tijolo de maconha na Fidalga. A polícia estimava na época que ele movimentava de 4 a 5 quilos de cocaína por semana. Quando João saía de circulação, os negócios do Mangue eram tocados pelos "aviões", meninos de confiança que o ajudavam a negociar com os clientes que passavam de carro ou faziam entregas nos bares e casas noturnas da área. Na cobertura dessas brechas é que surgiu o pupilo Gegê.

Sete anos mais novo que João, Gegê não chegou a fazer grandes mudanças na estrutura das bocas. Elas continuavam como um negócio relativamente pequeno, que não deixava os traficantes ricos. Gegê também entrava e saía da cadeia, ocasiões em que era substituído pelo irmão mais novo, Cristiano - filiado ao PCC e morto há três meses, numa perseguição policial.

Foi nas penitenciárias, de onde Gegê não saiu mais desde 2000, começou a encorpar no mundo do crime. Ficou importante a ponto de os deputados da CPI do Tráfico de Armas perguntarem a Marcola se ele conhecia Gegê quando tomaram seu depoimento, no mês passado, em Presidente Bernardes. "Conheço. Tá preso aqui. A gente vive tirando cadeia nos mesmo lugares", disse, às gargalhadas, Marcola ao deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que o interrogava.

A ascensão de Gegê no Partido do Crime, como os presos chamam o PCC, só foi detectada pela polícia em 2003. Na ocasião, ele já era o piloto (gerente) da Penitenciária de Avaré, onde estava presa na época a cúpula do grupo. E foi lá que Gegê passou a assumir tarefas de responsabilidade no PCC, como a participação no assassinato do juiz-corregedor de Presidente Prudente, Antônio Machado Dias, vítima de um atentado em março de 2003.

Com a influência e a rede de contatos montada na cadeia, Gegê mudou o patamar dos negócios. Desde o começo de 2000, o drive-thru no Mangue minguou. O grosso do tráfico é destinado a bocas fora da região. Acabou o varejo. Começou o atacado.

Falar em Gegê na região do Mangue é tabu. Isso vale para escolas, postos de saúde, líderes políticos e religiosos, numa espécie de lei do silêncio no coração cultural de São Paulo. Mesmo quando um ônibus pega fogo na esquina das Ruas Aspicuelta e Fidalga, no meio da agitação noturna. Fidalga, aliás, era a rua onde Gegê morava antes de ser preso.