Título: De um retrocesso a outro
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/08/2006, Notas e Informações, p. A3
No Oriente Médio, os relógios têm uma desconcertante peculiaridade: salvo raríssimas ocasiões, só andam para trás. A partir de 12 de julho, em represália à captura de 2 de seus soldados pela organização extremista Hezbollah, Israel fez desabar sobre o Líbano tamanha devastação - além da morte de um milhar de civis, incontáveis feridos e desabrigados -, que até mesmo a expressão ¿resposta desproporcional¿ usada inicialmente para classificar os bombardeios da aviação israelense ao vizinho do norte se tornou uma pálida descrição da realidade. Ao mesmo tempo, pela primeira vez desde a guerra que se seguiu à proclamação do Estado judeu, em maio de 1948, o seu território foi alvo de ataques sistemáticos, que deixaram uma centena de mortos e provocaram o maior deslocamento populacional de sua conturbada história. E ao fim e ao cabo - ainda que se sustente o cessar-fogo decretado pelo Conselho de Segurança da ONU na Resolução 1701 - tudo ficou pior na região.
O governo de Israel canta vitória, mas o tom é desafinado. O primeiro-ministro Ehud Olmert assegurou que o conflito privou o Hezbollah de 80% ou 90% de sua capacidade operacional - aparentemente alheio ao fato de que, no domingo, véspera da entrada em vigor da trégua, o movimento islâmico xiita atingiu o norte israelense com 250 mísseis, um número sem precedentes para um único dia. Ele celebrou ainda a resolução das Nações Unidas, que determina que o sul do Líbano, controlado há décadas pela tropa do xeque Hassan Nasrallah, seja ocupado por 15 mil homens do exército libanês e por uma força internacional do mesmo porte. Com isso, profetizou Olmert, o Hezbollah deixará de ser ¿um Estado dentro de um Estado¿. Ontem, porém, o jornal árabe Al-Hayat, publicado em Londres, informou que o governo de Beirute poderá autorizar o ¿Partido de Deus¿ a conservar as suas armas nos redutos ao sul do Rio Litani, o que configuraria uma clara violação do texto da ONU.
A ofensiva israelense pode ter enfraquecido militarmente o Hezbollah e a correlação estratégica de forças na região de fronteira do Líbano - o que só o tempo dirá. Mas os soldados de Israel começaram a voltar para casa sem a mais estrepitosa vitória que esperavam alcançar no plano simbólico: a localização e o resgate de seus companheiros capturados. Em vez disso, anunciou-se que um ex-chefe do serviço secreto militar foi incumbido de negociar a sua devolução - o que Tel-Aviv deveria ter feito em primeiro lugar, se o civil Olmert e o também paisano Amir Peretz, seu novato ministro da Defesa, não tivessem sido tomados pela soberba de se mostrarem mais duros que o agonizante Ariel Sharon. Ou tem fundamento a versão cada vez mais difundida - e aparentemente lastreada em fatos - de que há tempos os generais israelenses esperavam um pretexto para acertar as contas com a guerrilha que os vencera em 2000, quando o então primeiro-ministro Ehud Barak ordenou a retirada do sul do Líbano.
Agora, no mundo árabe-islâmico só o profeta Maomé ainda é mais venerado do que Nasrallah, o número um do Hezbollah, e a exultante percepção geral é de que Israel não é invencível, pelo menos em confrontos não convencionais. Em decorrência, se desmancha a nesga de esperança numa solução negociada para a questão palestina, sob a égide de dirigentes aptos a persuadir árabes e judeus das virtudes da moderação e o patrocínio de uma superpotência realista, capaz, portanto, de enxergar que o seu interesse nacional às vezes pode não ser idêntico ao de Israel. ¿Os êxitos da resistência¿, disse ontem o presidente sírio Bashar Assad, referindo-se ao Hezbollah, ¿mudaram o Oriente Médio.¿ O que os homens-bomba palestinos não conseguiram, os apadrinhados da Síria e do Irã no Líbano, desde sempre irredutíveis na sua rejeição ao Estado judeu, podem festejar nos escombros do bairro xiita de Beirute - sob o aplauso respeitoso dos sunitas, cristãos e drusos, seus tradicionais desafetos.
Historiadores do Levante sustentam que o maior erro de Israel foi não ter buscado a paz com os palestinos logo depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando o país estava no seu melhor momento e os seus inimigos, arrasados. Em vez disso, anexou Jerusalém e começou a colonizar os territórios ocupados - a enorme espinha atravessada na garganta dos seus vizinhos. Hoje, sob o ódio renovado a Israel e a crença na sua vulnerabilidade militar, de nenhum lado há parceiros para a paz e mais uma vez soa a hora do retrocesso.