Título: A lógica de Marcola
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2006, Espaço Aberto, p. A2

Centro de Detenção de Araraquara, em São Paulo: 1.443 presos num espaço destinado a 160. A foto que ilustra capas de revistas e jornais registra o trágico jogo de faz-de-conta em que se transformou a política de segurança pública no Brasil. Ao mesmo tempo, é um alerta, talvez o último, para o que resta de espírito público em contados governantes deste país. A bomba-relógio já foi acionada e a explosão não tardará. Graças à demagogia de alguns e à incompetência e ao imediatismo de muitos, caminhamos rumo ao descontrole total do Estado e à instauração de uma verdadeira guerrilha urbana. O Primeiro Comando da Capital (PCC), cuja existência as autoridades fingiram desconhecer, está, de fato, determinando a agenda das autoridades. Não há, lamentavelmente, políticas públicas consistentes na área de segurança. Há, sim, espasmos reativos das autoridades e sucessivas explorações eleitorais daqueles que transformaram o sofrimento da sociedade paulista em instrumento de captação de votos. O presidente da República, que sonegou verbas federais para a área de segurança de São Paulo, oferece, agora, tropas do Exército ao governador Cláudio Lembo. A proposta é de uma demagogia cortante. Pretenderá Sua Excelência resolver o problema penitenciário com o aquartelamento de tropas federais nos portões das prisões paulistas?

Enquanto os políticos manipulam o medo da população, o crime avança numa escalada sem precedentes e ameaça os próprios alicerces do Estado de Direito. Transcrevo, caro leitor, o diálogo do bandido Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, com o presidente da CPI do Tráfico de Armas, deputado Moroni Torgan (PFL-CE). O depoimento foi reproduzido pelo jornalista Josias de Souza. A sessão de inquirição de Marcola transcorria em tom cordial. Súbito, o presidente da CPI levantou o timbre de voz. Tentava arrancar do interrogado o reconhecimento de que comanda o PCC. Acusou a facção criminosa de aproveitar-se dos presos, obrigando-os a reincidir no crime depois de libertados da cadeia, para financiar o PCC. Marcola não gostou nem do tom de voz do deputado nem das observações. E pediu respeito.

Moroni - ¿O que existe é uma organização criminosa.¿

Marcola - ¿Vamos parar o grito (...).¿

Moroni - ¿Uma organização criminosa.¿

Marcola - ¿Vamos gritar. É isso que o senhor quer?¿

Moroni - ¿Eu falo do jeito que eu quiser (...).¿

Marcola - ¿Não grita, pô!¿

Moroni - ¿Agora eu quero dizer, com todo o respeito que eu tenho pela humanidade: o PCC existe para explorar os coitados dos presos que têm que sair para a rua e trabalhar para eles. Tem que trabalhar, tem que ser criminoso. Se tu saíres, pagar tua pena, tu tens que ir para rua para ser criminoso.¿

Marcola: ¿E o que é que os deputados fazem? Não roubam também? Roubam para car..., meu!¿

Moroni - ¿É, isso vai ser outra coisa que tu vai ser indiciado também.¿

Marcola - ¿Só porque deputado rouba eu vou ser indiciado?¿

Moroni - ¿Por desacato. Disso tu vais ser indiciado.¿

Marcola - ¿Que moral tem algum deputado para vir gritar na minha cara? Nenhuma.¿

Moroni - ¿Todo homem de bem tem moral de falar.¿

Marcola - ¿Mas quem disse que... Cadê o homem de bem? Todo bandido fala que é homem de bem.¿

A lógica de Marcola é direta: não há diferença entre um traficante e um deputado. Ambos roubam. Segundo a filosofia do ideólogo do PCC, a democracia é o regime do vale-tudo. A dedução, absurda, tem sido confirmada pelo comportamento de muitas de nossas autoridades. Todos os sinais foram trocados. O que fazer quando o próprio presidente da República, em estarrecedora entrevista concedida a uma jornalista em Paris, considerou normal que as agremiações partidárias operassem com caixa 2? Poucos dias depois de devolver ao PMDB o comando dos Correios, marco zero do maior escândalo da História do nosso país, o presidente Lula rebateu as críticas de que aderiu de vez ao fisiologismo com um argumento surrealista: não responderá por escândalos e deslizes cometidos em áreas de seu governo controladas por outros partidos. A estratégia do presidente que nada sabe está sendo substituída pela tática da omissão preventiva.

O que fazer quando parlamentares, do governo e da oposição, promovem a maior pizza da História política do Brasil? O que fazer quando indiciados por um rosário de crimes não só festejam com estardalhaço as iníquas absolvições patrocinadas por seus pares, mas aproveitam a ocasião para anunciar seus projetos de reeleição?

O combate ao crime organizado exige, por óbvio, urgentes ações repressivas e preventivas. Mas reclama, sobretudo, uma profunda reavaliação das atitudes e comportamentos éticos que norteiam a vida pública nacional. A falência da verdade é a principal causa da decadência de qualquer sociedade. E, em contrapartida, reerguer uma sociedade é reerguê-la primeiro eticamente, fazendo reinar nela o que há de mais essencial: o primado da verdade. A imprensa tem importante papel no processo de revigoramento ético da sociedade.

Não se constrói uma democracia com mentira, casuísmos ou espertos malabarismos jurídicos. Edifica-se uma grande nação, sim, com o respeito à lei e à verdade. A transparência informativa, de que o governo do presidente Lula não gosta, representa o elemento essencial de renovação do Brasil. A imprensa, no cumprimento de sua missão de informar, não frustrará a expectativa de milhões de brasileiros. A mídia não é antinada e não está a serviço de nenhuma legenda partidária. Nosso cliente não é o poder. É você, caro leitor.

A conseqüência do crime deve ser a punição cabal e completa. Só assim, a terrível lógica de Marcola será derrubada.