Título: Opção pelo investimento
Autor: Ribamar Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2006, Economia, p. B2

O projeto de lei que estabelece as diretrizes para o saneamento básico, aprovado na semana passada pelo Senado, não é o mesmo que o ex-ministro das Cidades Olívio Dutra apresentou no início de 2005. Na verdade, o governo cedeu em pontos que antes considerava fundamentais, abriu mão de fixar uma política nacional para o saneamento que envolvesse a União, os Estados e municípios, como era o seu objetivo inicial, aceitou não criar o sistema nacional de saneamento e contentou-se em aprovar diretrizes genéricas para o saneamento básico, além de regras para a política do governo federal.

O recuo do presidente Luis Inácio Lula da Silva nesta questão mostra uma dose considerável de pragmatismo, de alguém cuja principal preocupação parece ser a de destravar os investimentos nesta área. Em busca de mais investimentos, o presidente sacrificou algumas teses históricas defendidas pelo PT.

O projeto aprovado é mais importante por seus aspectos financeiros, do que, propriamente, como um marco regulatório do saneamento. Este marco dependerá, principalmente, da decisão que for tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a titularidade dos serviços de saneamento básico nas áreas de interesse comum, como é o caso das regiões metropolitanas. O STF adia essa decisão desde 1998. Em março último, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas ao processo, quando a votação encaminhava-se para considerar que a titularidade do serviço de interesse comum é do município e não dos Estados.

É a partir da decisão do STF que será possível estabelecer a regulação dos serviços nas áreas de interesse comum, que atendem a maior parte da população brasileira. O projeto aprovado pelo Senado diz que é o titular dos serviços quem formulará a respectiva política de saneamento básico e que o serviço regionalizado poderá obedecer a plano elaborado para o conjunto de municípios, desde que isso seja decidido pelo titular. Ou seja, é preciso que o STF decida quem é o titular para que o plano e a política sejam estabelecidos. No caso do serviço local, a Constituição estabelece que a titularidade é do município.

O pragmatismo do presidente sacrificou, por exemplo, a participação dos conselhos das cidades no controle dos serviços de saneamento. Pelo projeto aprovado, os conselhos terão caráter meramente consultivo. O projeto inicial do governo determinava que os conselhos teriam caráter deliberativo. O favorecimento à população de baixa renda também foi sacrificado. Ao contrário do que estava previsto no projeto de Dutra, o projeto aprovado permite o corte de água da população carente por falta de pagamento.

Não ficou garantida também, no projeto aprovado pelo Senado, a transparência dos chamados subsídios cruzados, que era uma das questões centrais para Dutra. Por meio da prática de subsídios cruzados, as empresas estaduais de saneamento recolhem recursos em áreas mais ricas para serem utilizados em regiões carentes, cuja rentabilidade dos serviços de saneamento é menor. Dutra dizia que a falta de transparência dos recursos dos subsídios cruzados causa grandes prejuízos à prestação eficiente dos serviços porque sem ela não há como se avaliar os serviços, pois não se sabe ao certo quanto custam.

O presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), Silvano Silvério da Costa, acha que a aprovação do projeto pelo Senado foi um passo importante para um setor que há mais de 20 anos discute o seu marco regulatório. Mas ele adverte que sem a política nacional de saneamento e sem o sistema nacional de saneamento, a legislação aprovada poderá ser inócua. "O projeto não garante a universalização e nem a melhoria dos serviços", adverte. Silvano disse que a elaboração de uma Política Nacional de Saneamento é o próximo desafio. "Vamos manter a mobilização", informa.

O ministro das Cidades, Márcio Fortes, garante que a política federal de saneamento básico, definida nos artigos 48 e 49 do projeto aprovado, terá a adesão dos municípios e Estados. Isto porque o projeto estabelece que a União só repassará recursos para os governos estaduais e prefeituras que estiverem em conformidade com os dispositivos da política federal. "Como ninguém tem dinheiro para os investimentos, a União poderá exigir a adesão à sua política. Se quiser o dinheiro, o Estado ou o município terá que se enquadrar", raciocina o ministro.

Há, no entanto, pelo menos três aspectos financeiros no projeto que são importantes e que podem, sem dúvida, destravar os investimentos no setor. O primeiro deles prevê indenização aos atuais prestadores dos serviços de saneamento, nos casos em que o titular queira retomar o serviço. Este dispositivo preserva, principalmente, os interesses das companhias estaduais e abre uma porta para que a decisão do STF sobre a titularidade ocorra sem grandes traumas para as empresas que atualmente executam os serviços nas regiões metropolitanas do País.

O segundo dispositivo do projeto prevê que as prestadoras dos serviços de saneamento poderão deduzir os investimentos feitos na hora de pagar a Cofins e o PIS/Pasep. Os investimentos serão considerados créditos a serem compensados com os débitos desses dois tributos.

O terceiro dispositivo prevê o uso dos recursos do FGTS na capitalização das empresas de saneamento. Recentemente, Lula notou que há uma grande disponibilidade de recursos do FGTS para investimentos na área de saneamento, mas que não pode ser emprestada aos Estados e municípios. O relator do projeto de lei do saneamento básico, deputado Júlio Lopes (PP-RJ), estima que as disponibilidades atingem R$ 20 bilhões. O principal impedimento para o empréstimo desse dinheiro é a resolução 2.827/2001 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que fixa limites para o crédito ao setor público.

Como as empresas de saneamento são, basicamente, estaduais ou municipais, o endividamento delas é considerado déficit público. Para contornar esse impedimento do CMN, o projeto aprovado pelo Senado prevê que os recursos do FGTS poderão ser utilizados para a compra de ações das empresas de saneamento ou de debêntures. Ou seja, para capitalizar as empresas. O dinheiro do FGTS poderá também ser investido em Fundos de Direitos Creditórios e em outros fundos criados para investimento em saneamento básico. "A idéia é fugir do limite do Conselho Monetário", admite Lopes.

O conselho curador do FGTS ainda terá que regulamentar essa nova forma de aplicação, mas certamente ela é uma inovação que poderá alavancar os investimentos no setor.