Título: Esgota-se o modelo de ajuste fiscal
Autor: Raul Velloso
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2006, Economia, p. B2

Em retrospectiva, é impressionante como o País pôde deixar de se preocupar com a ameaça de hiperinflação e com o velho problema de escassez aguda de dólares. De fato, foram três as grandes conquistas da área econômica nos últimos anos: Fim da hiperinflação;

possibilidade de o câmbio real aumentar, sempre que necessário (antes, a inflação comia os aumentos nominais da taxa de câmbio);

possibilidade de se produzirem resultados fiscais expressivos e crescentes (em parte porque foi possível agregar os Estados e municípios ao esforço de ajuste fiscal), ainda que, como veremos a seguir, de difícil sustentação.

A junção do cenário externo superfavorável que predomina há vários anos com o atual sistema de ¿câmbio que funciona¿ levou à virada do balanço de pagamentos: em troca dos velhos e crônicos déficits na conta corrente, passamos a ostentar expressivos superávits, contrariando até nossa vocação natural (na divisão tradicional de posições econômicas no mundo, o Brasil estaria entre os que geram déficits externos e, portanto, absorvem poupança externa; agora, estamos mandando poupança para fora).

Falta a última grande conquista: controlar a dívida pública, de verdade. Ou seja, demonstrar capacidade de gerar saldos fiscais expressivos e sustentáveis, sob pena de não reduzir os juros reais básicos (Selic) abaixo de 10% ao ano, nem, portanto, recuperar taxas elevadas de crescimento econômico e do emprego.

Por que os saldos fiscais não são sustentáveis? De forma resumida, desde 1999 o setor público, como um todo, vem produzindo elevados e crescentes superávits fiscais primários (isto é, superávits antes de pagar juros), procurando conter o crescimento de sua dívida. Na presença de gastos correntes em forte ascensão, teve de recorrer, com muita força, ao aumento da arrecadação e ao corte dos investimentos a fim de gerar esses excedentes fiscais. Os gastos correntes subiam (e continuam subindo), porque temos a tendência de achar que só resolveremos nossas mazelas sociais com maiores gastos públicos.

A aposta era de que, em tempo hábil, as taxas de juros reais cairiam e os sacrifícios decorrentes da estratégia adotada poderiam ser amenizados, à medida que isso efetivamente se desse. Sem dúvida, maiores taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) poderiam seguir-se à queda das taxas de juros e levar a:

Maiores superávits para o mesmo esforço (pois, com o PIB crescendo mais, as receitas tenderiam a aumentar a taxas maiores que as dos gastos);

menores razões dívida-PIB (tanto por esse motivo como porque o denominador da razão cresceria mais e porque os juros seriam mais baixos).

Ocorre que, por vários motivos, as taxas de juros reais básicas (Selic) continuam altas (devem ainda fechar este ano acima de 10% ao ano), enquanto a capacidade de gerar superávits elevados, com base no modelo de aumento de receita mais corte de investimentos, que vem sendo seguido principalmente pela União, se está esgotando. Ou seja, não foi possível começar o círculo virtuoso e os superávits tendem agora a cair, a menos da implementação de medidas de cortes de gastos correntes de difícil viabilização política, especialmente num ano como este de eleições quase gerais.

À resistência para baixo das taxas de juros reais corresponde uma tendência no sentido de que a dívida pública, líquida dos ativos financeiros existentes, não se reduza abaixo do patamar de 50% do PIB, algo que, obviamente, desagrada aos detentores de papéis públicos.

O esgotamento do atual modelo de geração de superávits fiscais se dá porque existe considerável resistência da sociedade brasileira a novos aumentos de tributos e porque os investimentos públicos estão no ¿fundo do poço¿ há vários anos. Em adição, há uma tendência ao crescimento permanente dos gastos correntes. Mais do que isso, há um movimento no sentido do crescimento continuado dos ¿gastos obrigatórios¿, que representaram cerca de 96% dos gastos correntes no ano passado, quando se excluem desse cálculo as transferências a Estados e municípios por repartição de receita. Gastos obrigatórios são aqueles que o governo é obrigado a realizar, ou não consegue reduzir, em razão de disposições constitucionais e legais.

Quanto maior o peso dos gastos obrigatórios no total, maior a rigidez do gasto público e, portanto, mais difícil equacionar qualquer proposta de ajuste fiscal.

Diante desse quadro, o governo pode ¿empurrar o problema com a barriga¿, durante um certo tempo, mediante a adoção de medidas tópicas (por exemplo, recadastramento dos beneficiários do INSS e fusão das administrações tributárias da União) ou pode tentar a extração de maior volume de recursos do setor privado com medidas de efeito temporário (como na recente negociação com os fundos de pensão, que, em troca de redução do passivo, passaram a pagar Imposto de Renda e liquidaram um considerável volume de atrasados tributários).

Pode, inclusive, praticamente zerar os investimentos, o que seria um total absurdo. Todos esses caminhos têm, obviamente, uma duração curta. Em algum momento, o governo será levado a se antecipar a uma crise de confiança na sua capacidade de gerir adequadamente a dívida pública, tentando pôr em prática medidas de cortes efetivos de gastos obrigatórios. Noutra hipótese, tomará decisões só num indesejável contexto de crise, como já ocorreu várias vezes, pois mesmo num ambiente externo francamente favorável a percepção de risco do País pode mudar para pior rapidamente, por razões internas.

Não há, obviamente, como prever quando será o dia D do problema fiscal brasileiro. Só se sabe que a cada dia que passa ele se aproxima mais e mais. A União, por exemplo, aumentou seus superávits fiscais primários significativamente de meados de 1999 ao ano passado. Desde dezembro, contudo, esses superávits vêm caindo sistematicamente. As autoridades prometem que, atingido o ponto coerente com a meta global (pois antes havia uma certa ¿gordura¿ entre o resultado e a meta), o superávit parará de cair, mas não explicam com clareza como isso será viabilizado. Os mercados continuam otimistas, acreditando que, ao final, alguma solução virá. Queira Deus.