Título: O poder dos políticos na mídia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2006, Notas e Informações, p. A3

O descalabro é antigo e era conhecido nos seus termos gerais. Diretamente, ou acobertados por familiares, laranjas e testas-de-ferro, os políticos figuram entre os principais donos das mais de 4 mil emissoras de rádio e televisão. O artigo 54 da Constituição proíbe expressamente que deputados e senadores tenham vínculo com empresas concessionárias de serviço público - o que é o caso da mídia eletrônica. O artigo seguinte prevê a perda do mandato dos infratores. Embora a transgressão por atacado do dispositivo constitucional de há muito fosse um segredo de polichinelo, só recentemente foi possível ter uma noção aproximada da dimensão do chamado coronelismo eletrônico - a versão contemporânea e mais eficaz dessa velha chaga da política nacional.

Até 1988, a outorga e renovação de concessões do gênero era atribuição do Executivo. Desde então, cabe ao Congresso referendar ou não as concessões. Trocou-se um mal por outro, como se não existisse um conflito congênito de interesses entre os políticos sempre prontos a usar a mídia a serviço de suas ambições de poder e a sociedade detentora do direito constitucional de se informar por meios de comunicação isentos e independentes. O pior é que antes de novembro de 2003 os brasileiros não tinham como saber quais eram os concessionários de rádio e TV no País - só então o Ministério das Comunicações colocou na internet o respectivo cadastro, embora com limitações: nem sempre nele aparecem os nomes dos verdadeiros controladores das emissoras.

De todo modo, isso permitiu que se pesquisasse pela primeira vez os nexos espúrios entre os políticos e a mídia audiovisual. O Instituto Projor, que mantém o site Observatório da Imprensa, encomendou a uma equipe da Universidade de Brasília, dirigida pelo professor Venício A. Lima, um levantamento que revelou um quadro vergonhoso. Cruzando os nomes dos sócios e diretores de empresas de comunicação com os dos atuais deputados, o estudo descobriu que 51 deles - ou 1 em 10 - detêm ilegalmente concessões de rádio ou TV. O número real é decerto bem maior, dado o "fator laranja". De seu lado, o Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação, com base em outra fonte de dados do Ministério, verificou que 25 senadores - ou mais de 1/4 do total - têm, direta ou indiretamente, empresas de difusão. O Estado publicou ontem a relação completa.

Isso ainda não é tudo. Não bastasse a afronta à Constituição, os políticos concessionários ainda legislam em causa própria. Em 2004 (último ano examinado), dos 33 membros titulares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara, 15 são sócios ou diretores de 26 emissoras de rádio e 3 de televisão. Assim como a Comissão de Educação do Senado, ela tem a prerrogativa de homologar novas concessões, aprovar a renovação das já existentes e se pronunciar sobre projetos relativos ao setor. Depois de acompanhar a tramitação de 762 processos, o professor Venício apurou que, "até hoje (agosto de 2005), não se tem notícia de qualquer pedido de outorga ou renovação que não tenha sido aprovado pelo Congresso Nacional".

A pesquisa suscitou o que decerto há de ter sido a primeira iniciativa de dar combate, por via legal, ao escândalo das autoconcessões. Em 25 de outubro do ano passado, o Instituto Projor encaminhou à Procuradoria-Geral da República a documentação para servir de base a uma representação contra a deslavada inconstitucionalidade que se faz presente, à luz do sol, no sistema de concessões de rádio e TV - e que tem papel central no nefasto processo de concentração da mídia eletrônica. Em março, o Ministério Público solicitou ao Ministério das Comunicações que se manifestasse a respeito. O prazo terminou ontem.

Enquanto isso, veio à tona outra lambança. No começo da semana passada, numa atitude inédita, o Planalto pediu de volta ao Congresso 225 processos de renovação de concessões vencidas, algumas há 15 anos, ameaçadas de rejeição na CCTCI. Segundo se divulgou, o presidente Lula agiu por instigação do seu aliado Jader Barbalho, que corria o risco de perder duas estações de rádio e uma de televisão. Outros políticos interessados são os ex-presidentes José Sarney e Fernando Collor. Não faltam, como se vê, parcerias indecentes no forró das concessões de mídia.