Título: Sem Fidel, nada será o mesmo em Cuba
Autor: Tomás Eloy Martínez
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/08/2006, Internacional, p. A15

A maioria dos líderes de mão-de-ferro lembrados pela História é supersticiosa em relação à morte. Esses homens não suportam pensar que seus súditos conhecerão um futuro no qual eles não existirão mais.

Também é loucura para qualquer um deles especular sobre possíveis herdeiros - o que poderia resultar num rápido declínio rumo à desgraça.

Fidel Castro é a exceção a essa regra insana. Há algum tempo, ele designou o irmão Raúl como sucessor, e o próprio Raúl, em meados de junho, falou sobre o que poderia acontecer em Cuba depois da morte de Fidel, com a franqueza brutal que a realidade inevitável merece.

¿O Partido Comunista continuará como o eixo do poder político na ilha - com ou sem Fidel Castro¿, declarou Raúl há poucas semanas. ¿Só o Partido Comunista pode garantir a unidade de todos os cubanos.¿ Ao contrário das conjecturas de muitos analistas, Raúl não presidirá um governo mais flexível e aberto que o do irmão e os Estados Unidos não ficarão mais dispostos a abrir nenhum diálogo com ele. Assim, parece que o bloqueio - um grande e obsessivo erro da política americana - permanecerá em vigor e pouca coisa vai mudar, pelo menos por enquanto.

No dia 13, Fidel deve completar 80 anos. Na ilha, o governante continua sendo uma lenda e muitos cubanos, incluindo seus adversários, acreditam que ele possa viver muito além dos 100. Augusto Pinochet, afinal, tem quase 91 e está mais lúcido e bem-humorado do que nunca, segundo os advogados que o visitam, embora ele tenha sido declarado, há menos de um ano, incapaz de enfrentar um julgamento por razões de senilidade.

Fidel, por outro lado, de fato mostra sinais de fadiga. Sua voz perdeu o vigor e ele não consegue mais fazer os discursos intermináveis dos dias de glória.

Em janeiro de 2002, espalhou-se como um raio a notícia de que ele sofrera um grave ataque cardíaco e poderia morrer a qualquer momento. No dia seguinte, sem nenhuma referência ao boato, Fidel cuidou dos assuntos do governo como se nada tivesse acontecido. Jornalistas de Havana teorizaram na ocasião, como muitos outros, que ele provavelmente tomara o elixir da imortalidade.

Os exilados cubanos em Miami, muitos dos quais conservam os títulos de propriedade de suas terras e casas expropriadas pela revolução de Fidel, perderam a esperança de recuperá-las. Até mesmo o governo dos EUA, que ao longo de meio século tramou centenas de tentativas de assassinato engenhosas e teoricamente infalíveis contra Fidel, espera apenas que a natureza tenha mais sucesso que os dez presidentes americanos aos quais seu regime sobreviveu.

Seus detratores e amigos ao redor do mundo, no entanto, falam tão apaixonadamente sobre ele que as guerras verbais não cessam desde 1971, quando o regime se tornou linha-dura: a condenação do poeta Heberto Padilla naquele ano foi um divisor de águas e voltou os principais intelectuais do mundo contra a revolução. Certos autores, como Mario Vargas Llosa e Octavio Paz, foram em seguida estigmatizados por Fidel e por escritores aceitos pelo governo.

Embora a agressão mútua não tenha cessado, o clima político esquentou novamente em abril de 2003, quando três pessoas que haviam seqüestrado um barco para fugir da ilha foram executadas e muitos outros oponentes do regime foram presos. Foram citadas razões de segurança que ainda não convenceram ninguém.

Alguns jornalistas da ilha acreditam que as ferozes punições foram ordenadas quando a inteligência cubana descobriu que conspiradores pagos pela CIA organizavam em segredo centros de revolta contra Fidel em várias cidades.

É difícil, contudo, acreditar que um dos prisioneiros, confinado no isolamento e na escuridão, pudesse ser um bandido perigoso. Trata-se do bibliotecário Victor Arroyo, cujo crime aparentemente foi criar uma rede de empréstimo de livros não autorizados pelo governo. Ele também foi acusado de possuir um aparelho de fax, mas demonstrou que a máquina exibida em seu julgamento não lhe pertencia.

Muitos dos defensores ardentes de Fidel o abandonaram, como o escritor português José Saramago, Nobel de literatura de 1998. A ativista e escritora Susan Sontag, no entanto, assumiu uma posição mais militante, com o repúdio total de Gabriel García Márquez, um dos amigos mais íntimos de Fidel, na feira de livros de Bogotá. Sontag, que morreria meses depois (em dezembro de 2004), afirmou na ocasião que era ¿imperdoável e inexplicável¿ o fato de o criador de Cem Anos de Solidão não ter aberto a boca para condenar o ultraje de abril.

Os íntimos de García Márquez sabiam - certamente no caso de Sontag - que em particular ele discordava ocasionalmente da posição do governo cubano, mas não criticava Fidel em público. A amizade entre García Márquez e Fidel, que os dois nutriram com muito cuidado ao longo de mais de três décadas, continua a ser sagrada para o Prêmio Nobel colombiano. Não obstante, assediado pela imprensa, García Márquez foi obrigado a reagir, sobretudo porque a pessoa que o questionara era uma intelectual que travara muitas batalhas a seu lado e era amplamente respeitada pelos colegas.

¿Não responderei a acusações desnecessárias e provocadoras¿, disse ele. ¿Sempre condenei a pena capital, independentemente do país em que fosse aplicada.¿

Fidel está para completar 80 anos vividos com intensidade. E, não importando quão inflexíveis sejam Fidel e seu irmão Raúl ao insistir que os nós da sucessão estão firmemente atados, nada será o mesmo em Cuba se algo acontecer com o líder.

Uma onda de caos não seria impensável. Ou várias ondas. O ódio se acumula há meio século e Fidel certamente sabe que só ele é capaz de contê-lo. Como Luís XV em 1757, ele poderia dizer: ¿Aprés moi, le déluge¿ - ¿Depois de mim, o dilúvio.¿ E estaria certo.

*Tomás Eloy Martínez é escritor argentino, autor de `O Vôo da Rainha¿, entre outros livros. Ele escreveu para o The New York Times