Título: A trágica Qana vira cidade fantasma
Autor: Eduardo Salgado
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/08/2006, Internacional, p. A17

Quando Mohammed acordou na madrugada de domingo, ele estava voando. Mohammed era uma das pessoas que dormiam num prédio de quatro andares quando uma bomba israelense matou 56 pessoas, na maioria crianças. Isso foi no sul do Líbano, em Qana, onde ontem no começo da tarde não havia ninguém. Apenas o ruído alto de aviões e o barulho de explosões distantes.

Mohammed, de 41 anos, caiu com o peito no chão e não conseguia ver nada em meio à escuridão. Só ouvia os berros por socorro. Rabab, 30 anos, a mulher de Mohammed, também foi coberta pela poeira e as pedras. Logo procurou pelos filhos Hassan, de 4 anos, e Zaynab, de 6. A família dormia no térreo. O menino estava bem, mas a menina parecia molhada em sangue. "Logo vi que estava morta porque não se mexia", lembrou Rabab ontem, deitada na cama ao lado de Mohammed e de Hassan no Hospital Jabal Amel, em Tiro, a 15 minutos de carro de Qana. Os três têm ferimentos provocados pela estrutura de cimento que veio abaixo e por partículas da bomba. "Não vamos enterrar nossa filha enquanto essa guerra não acabar", disse a mãe.

Além deles, o Hospital Jabal Amel tem outros dois pacientes que estavam no prédio. As duas mulheres, irmãs na faixa dos 20 anos e em bom estado de saúde, estão entre os 15 sobreviventes, mas perderam os pais e os irmãos. Os corpos deles e o da filha de Mohammed e Rabab estão junto com os demais no Hospital Governamental, a algumas quadras do Jabal Amel. É lá que está a câmara frigorífera com 60 lugares. Para a direção do hospital, é improvável que o desejo de Rabab seja atendido. Ninguém pode prever quanto tempo essa guerra vai continuar, e as câmaras precisam ser liberadas à medida que chegam novos mortos.

O Hospital Najem é o mais próximo de Qana. Também fica em Tiro, mas a apenas 10 minutos de carro da cidade que se tornou o símbolo do atual conflito. Há quatro dias, o pequeno hospital não recebe nenhum paciente porque simplesmente as áreas ao redor estão vazias. Ontem às 14h30, na porta do Najem, havia apenas uma mulher, três crianças e um senhor. Os que saíram de Qana no domingo foram direto para os dois hospitais maiores.

A contar pela aparência que tinha ontem, Qana se transformou numa cidade fantasma. Na entrada, carros e caminhões atingidos por bombardeios. Para chegar ao prédio onde morreram as 56 pessoas é preciso sair da rua principal e dobrar à esquerda numa via estreita. Ao final da rua, não é possível seguir de carro. Em meio às ruínas, uma casa intacta exibe uma pequena bandeira do Brasil. Mohammed e Rabab garantem que não havia brasileiros na vizinhança e que a bandeira deve ser um resquício da Copa do Mundo. O abrigo destruído na madrugada de domingo fica mais acima.