Título: Violência e contraviolência
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, é um jornalista para o qual seria justo reservar os melhores elogios. Dono de um currículo ascendente, exerce o jornalismo como um apostolado, lutando diariamente pela liberdade de imprensa, unida à responsabilidade, bate-se contra a burocratização das redações e a simplificação comodista das matérias, e isso com uma valentia de galo de briga, disposto a derramar até a última gota de sangue. Admirável! Só que não é possível falar das qualidades de Dines sem mencionar os defeitos de suas qualidades. Sua principal qualidade está no zelo profissional, quase religioso, o qual, unido à independência e ao mais nobre idealismo, faz de sua tribuna no jornal, no rádio e na TV uma cátedra de imprensa de ampla repercussão pedagógica. Seu maior defeito: o excesso de zelo. O excesso de zelo leva ao exagero, predispõe ao maniqueísmo, favorece a discriminação aberta ou velada, induz a procurar chifre em cabeça de cavalo e pode transformar o observador imparcial num patrulheiro obstinado.

Num de seus últimos programas na TV Cultura, dedicado ao tema da guerra, de repente Dines estranha a tão falada "desproporcionalidade" da reação de Israel contra o Hezbollah. "Por que se fala tanto em reação 'desproporcional'? Haverá hipótese de reação proporcional no uso da violência?", indaga.

A dúvida reflete certa simploriedade, natural ou calculada. Na mesma linha um tanto singela, lembremos a figura da legítima defesa, capitulada no artigo 25 do Código Penal como excludente da ilicitude: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem." Notem-se os requisitos da legítima defesa: a) agressão injusta (atual ou iminente); b) defesa de um direito (próprio ou de terceiro); c) repelida por meios necessários, usados moderadamente. Se a agressão não é injusta, atual ou iminente, se não inclui a defesa de um direito e se não são usados meios necessários, com moderação, não existe legítima defesa. De onde se conclui que a proporcionalidade reside no uso moderado dos meios necessários. Caso contrário, a reação será desproporcional. Por exemplo, se alguém me dá um empurrão ou me insulta, não posso responder a tiro ou facada para matar ou ferir o autor.

Israel justifica sua ação devastadora no Líbano pelo seqüestro de dois soldados israelenses pelo Hezbollah. Os meios empregados ultrapassaram a medida do necessário (tanques, canhões, aviões, armas sofisticadas de tremendo efeito destrutivo). Nem seu uso foi moderado. A desproporcionalidade é óbvia.

A legítima defesa consiste numa das formas mais corriqueiras do uso legal da violência. Há outras bem mais básicas aderidas aos próprios alicerces da sociedade. O poder público exerce-se pelo mando, e todo mando estatal inclui, virtualmente, a violência. A polícia e o Exército não atuam oferecendo bombons nem doce de leite aos infratores. Nas desordens coletivas, nas greves predatórias, nas rebeliões armadas, na execução de certos mandados judiciais, na defesa do território, na repressão ao crime, ao tráfico de drogas e de armas, na resposta ao terrorismo polícia e Exército têm de entrar para valer. Na sociedade, em toda sociedade, há uma luta surda, agora cada vez mais declarada, entre as forças da ordem e as "potências maiores do crime", que atuam nos subterrâneos do corpo social, prontas a irromper a qualquer hora. Por isso não se admite nenhum Estado sem o competente poder repressivo, ou a sociedade voa pelos ares. Max Weber, numa surrada citação, fala no monopólio da violência legal pelo Estado. A violência estatal é como o ar que respiramos, imperceptível, invisível. Basta, porém, que o sopre a tempestade para que a violência oficial se manifeste da forma mais terrível. Cabe aos poderes constituídos, à aplicação dos dispositivos legais, à imprensa intervir para que a violência estatal não se desmande, como ocorre agora no Oriente Médio, com as grandes potências e a ONU paralisadas por conveniências políticas mal explicadas.

Outra forma de violência legal, reconhecida pela sociedade, é a violência esportiva. Esportes existem que são constitutivamente violentos, como o boxe, o futebol americano, a tourada, e nem por isso se configuram como contra a lei. Novamente, cumpre à polícia, ao Ministério Público e à Justiça vigiarem de perto para que não se cometam exageros.

Em resumo, a sociedade convive legalmente com a violência em diversas formas. No Direito Penal (a legítima defesa), na repressão à desordem ambiente, mediante a polícia e o Exército, e no esporte. Ao contrário do que propõe certo humanismo edulcorado, que concebe a sociedade como a cidade dos anjos, a violência dentro da lei é a resposta imperiosa à violência fora da lei.

E a guerra? Temos de distinguir a guerra de seus efeitos perversos, como fazemos em relação aos medicamentos e seus efeitos secundários. A guerra em si, como instituição, não significa só destruição, como parece. Já foi dito que a guerra não é um instinto, é um invento, como a ciência e a administração. Todas as formas de disciplina conhecidas derivam da disciplina militar, que foi a primeira. "Existe guerra justa?" Quem faz a pergunta estará pondo em dúvida a derrota do Eixo e a salvação da Europa e do mundo do câncer nazista (1945). Toda certidão de nascimento de uma cultura é constituída por uma epopéia, um poema de guerra, como a Ilíada, a Eneida, o Mahabharata e o Ramayana, a Chanson de Roland e os Nibelungen.

"Paz" é uma bela e nobre palavra. Mas a paz não consiste só na supressão da guerra. Representa todo um sistema de novo relacionamento entre os homens, a ser construído com muito esforço e, inclusive, muita guerra ainda.