Título: Justiça preserva o QG do PCC
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/08/2006, Notas e Informações, p. A3
Dois dias após o Primeiro Comando da Capital (PCC) ter seqüestrado um jornalista para obrigar a TV Globo a exibir um vídeo em que acusa o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) de ser inconstitucional, três desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) acolheram a "tese" da facção criminosa. Ao conceder um habeas-corpus impetrado pelo líder da facção, Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, os três magistrados invocaram a inconstitucionalidade do RDD para embasar seus respectivos votos.
A decisão causou perplexidade, pois, se é discutível, no mérito, poderá ser desastrosa, em suas conseqüências sociais. Embora a constitucionalidade do RDD venha dividindo os especialistas desde que ele foi criado há cinco anos por uma resolução da Secretaria da Administração Penitenciária, este não era o momento mais adequado para o TJ tratar a questão exclusivamente com base no formalismo legal. Diante da estratégia que o PCC passou a usar, convertendo argumentos ideológicos e jurídicos em cortina de fumaça para mascarar iniciativas criminosas e confundir a opinião pública, ao discutir o RDD em seus aspectos formais o TJ acabou fazendo o jogo da facção criminosa.
Com a justificativa que deram para a concessão do habeas-corpus em favor de Marcola, os desembargadores, ainda que não fosse esse seu desejo, legitimaram a retórica pseudojurídica do PCC. Ou seja, passaram um atestado de validade a uma "causa" especialmente urdida pela facção criminosa para tentar neutralizar uma das poucas medidas que a incomodam e a intimidam. Marcola sabe que, enquanto puder comandar as suas ações de rua de dentro da prisão, não haverá esquema defensivo da polícia que possa derrotá-lo. Por isso, ao relegar para segundo plano a audácia do PCC e os perigos que ele cria para toda a sociedade, os magistrados mostraram o quanto a Justiça se encontra distanciada da realidade.
"Isso é decisão de quem tem segurança e tapete vermelho por onde vai", afirmou, com razão, um dos procuradores que integram o grupo montado pelo Ministério Público para combater o crime organizado. "E agora? Você fica aqui arriscando a vida e os caras no ar condicionado fazendo uma coisa dessas", concluiu, após chamar a atenção para a indignação e o desestímulo que a decisão do TJ provocou nos órgãos encarregados da segurança pública.
De que adianta os policiais e promotores se exporem para tentar ganhar a guerra contra o PCC, se os juízes comportam-se de modo concessivo e leniente com relação aos líderes do crime organizado, a ponto de preservar a incolumidade do seu QG? A magistratura sempre se ressentiu da má imagem que alguns braços do Judiciário têm junto à população. A decisão que a 1ª Câmara Criminal do TJ tomou dois dias após a mais ousada ofensiva do PCC mostra que a desconfiança não é gratuita.
Não é de se estranhar, portanto, que poucos foram os que se levantaram em defesa da decisão da 1ª Câmara Criminal do TJ. É esse o caso do juiz aposentado Luiz Flávio Gomes, para quem, das três hipóteses previstas para o uso do RDD, duas seriam inconstitucionais. "Ele é válido no caso do preso que comete crime dentro do presídio. Mas não é válido nos outros dois casos - suspeita de participação em organização, o que é muito vago, e quando o preso é perigoso, o que é muito subjetivo", diz Gomes. Contudo, depois de tudo o que Marcola falou na CPI do Tráfico de Armas, onde foi apresentado como líder do PCC e não fez objeção quanto a isso, e do recente assassinato de Cesar Roriz, o Cesinha, um de seus adversários na disputa pelo comando da facção, e que se encontrava preso na penitenciária de Avaré, os argumentos de Gomes não se sustentam.
Desde o advento de organizações criminosas violentas, como a Máfia, o isolamento rigoroso como dispositivo de segurança é aceito em quase todo o mundo. Ele é baseado num princípio jurídico que, sem ferir garantias fundamentais e apelar para medidas de exceção, põe o interesse público acima de outros princípios, como o da individualização da pena. Infelizmente, ao se prender a um formalismo estéril no exame do RDD, a 1ª Câmara Criminal do TJ deixou de lado o saudável princípio que, em matéria de segurança, prioriza o interesse público e protege a parte mais interessada - a sociedade.