Título: Programas de governo?
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

Quem acredita nos programas de governo apresentados pelos candidatos nas eleições só pode ser muito crédulo. Os programas de governo são feitos para não serem cumpridos. E não por culpa dos políticos, mas porque a execução do programa depende de fatores que fogem ao controle de qualquer um. Depende dos recursos, que faltam quase sempre, das circunstâncias, que mudam muito, das resistências políticas e dos entraves burocráticos.

É principalmente a imprensa que cobra dos candidatos o programa de governo, num exercício meio de formalismo, meio de hipocrisia. Heloísa Helena teve de sair pela tangente, outro dia, quando lhe perguntaram se iria desapropriar terras produtivas, como consta dos estatutos de seu partido. Mais que depressa improvisou uma distinção entre plano de partido e plano de governo, deixando no ar uma impressão de insinceridade e oportunismo, como se o plano do partido fosse letra morta.

Programa de partido e programa de governo são indiferentes para o eleitorado. Este não mede os candidatos nem por um nem por outro. A medida dos candidatos aos olhos dos eleitores é o argumento. A imagem, a retórica do candidato não se nutrem, jamais, de um programa, e sim de um argumento de governo. Na política tem mais força o argumento do que o programa. Este é um texto frio, esquemático e desinteressante, que não empolga ninguém. Ao passo que o argumento é um grito de guerra, uma palavra incitante e mobilizadora, o disparo de um projeto no qual vai o nosso destino coletivo. Nas horas em que a Nação está ameaçada de afundar como um barco naufragado, o governante não oferece um programa de ação ao povo, mas um argumento de salvação. Winston Churchill, ao assumir o governo da Inglaterra em guerra com a Alemanha, em 1940, pronunciou aquelas palavras famosas: "Só posso oferecer-vos sangue, trabalho, lágrimas e suor." Não é um programa, é um argumento com o qual salvou seu país. Cavour, o unificador da Itália no século 19, adotou como lema "L'Italia fará da sè", a Itália fará por si. Um programa? Não, um argumento. Outro tanto se diga do nosso dom Pedro I ao proclamar a independência do Brasil: "Independência ou morte!"

O programa não passa de um mero protocolo de intenções. Já o argumento constitui a própria expressão da vida coletiva, é a vida social adquirindo forma e figura numa fórmula vibrante. O argumento tira sua força na política do fato de que "a vida humana, toda ela , em todas as suas dimensões, é argumental. Todo o humano o é" (Julián Marías, a quem se deve a distinção entre programa e argumento). O amor, a amizade, a carreira, a arte, a ciência, o direito têm no argumento sua espinha dorsal. A política não é diferente. A política sem programa pode ser vaga e desarticulada. Mas a política sem argumento é invertebrada. A fidelidade ao argumento leva ao programa, mas o programa sem a centelha do argumento se compara a um feixe de lenha que nunca produzirá luz nem calor. Daí a primazia do argumento sobre o programa. Quem tem o argumento terá um dia o programa. Quem tem somente o programa, sem a incitação do argumento, se imobiliza numa camisa-de-força desesperadora. Pense-se na economia, por exemplo. A economia alimenta-se de um argumento básico - produzir e distribuir riqueza. Este é o ponto de partida. A planificação, a organização, a programação vêm depois.

Lula é freqüentemente acusado de não ter programa. E não tem mesmo. Para que programa, se ele tem "carisma"? Se contava com a pronta assistência de Antonio Palocci, e conta ainda com a colaboração estreita de Márcio Thomas Bastos, Ricardo Berzoini, Renan Calheiros, José Sarney e outros sapateiros remendões e dignos canastrões da República? Lula não tem programa e seu argumento - transformar de alto a baixo "este país" - está desgastado e desmoralizado.

Geraldo Alckmin também é criticado porque não teria programa. O programa do candidato existe, mas é pouco visível; está centrifugado e pontualizado aqui e ali. Até parece saber que ninguém acredita em programa. Mas Alckmin é animado por um argumento dominante, que se resume numa só palavra: integração. Integração das forças organizadas do País, sem exclusão preconceituosa de nenhuma delas (produtores, exportadores, assalariados, Justiça, educadores, estudantes, artistas, cientistas, intelectuais, banqueiros, por que não?). Alckmin é o candidato da integração. Ao contrário de Lula, que opera misturas confusas em seu caldeirão, Alckmin, com os mesmos elementos, não faz misturas, mas combinações diferentes.

Heloísa Helena é o voluntarismo em festa ("eu vou fazer", "eu vou cumprir", "eu isso", "eu aquilo"). Seu discurso é frágil, sem base na realidade política, econômica e cultural do País. Apela para os sentimentos reprimidos do Nordeste, tão sofrido e tão discriminado, inspirada na Bíblia, como uma Antônia Conselheira sem barba, de jeans e singela blusinha de algodão. Na sua retórica ecoa o orgulho da luta entre o anão e o gigante. Muita indignação, muita vociferação, muito ruído, muita fúria e nenhum argumento propositivo, global, que integre todas as classes e todos os grupos, sem discriminações odiosas e ineptas.

Cristovam Buarque é um caso exemplar. Não apresenta nenhum programa frio, insincero e aborrecido, mas lança um argumento decisivo, ligado à maior carência do nosso povo, sintetizado numa só e obsessiva palavra: educação. Da arca da educação Buarque retira tesouros extraordinários - emprego, desenvolvimento, renda e tudo o que nos falta. Com firmeza inabalável e agressividade zero, este humanista notável, em companhia do seu vice, Jefferson Peres, restaura a dignidade do homem público no Brasil.