Título: Justiça do PA barra grileiros
Autor: Flavio Lobo
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/08/2006, Vida&, p. A21

Uma pequena comunidade ribeirinha acaba de conquistar uma vitória inédita na luta pelo direito à terra na Amazônia. Por decisão do juiz federal Francisco de Assis Garcês Castro Júnior, o acesso a Mangabal, uma área de 66 mil hectares na região do Alto Tapajós, no Estado do Pará, passa a ser permitido exclusivamente a quem obtiver autorização da população que habita o local há mais de um século.

A liminar invoca a defesa de valores socioambientais, uma vez que, segundo um estudo encomendado pelo Ministério Público Federal (MPF), a comunidade tem sido responsável pela preservação da floresta e por um aumento da biodiversidade na região.

"Imagens de satélite mostram uma clara diferença entre a região de Mangabal e áreas vizinhas degradadas", diz Wilsea Figueiredo, bióloga da Universidade Federal do Pará (UFPA), autora do relatório. "Ao visitar a região, constatamos que mais do que preservar, a comunidade local tem induzido o aumento da biodiversidade."

"Mangabal deve ser o único lugar no planeta onde se encontram mais de trinta tipos de mandioca, sendo que existe apenas uma meia dúzia de variedades conhecidas pelos agrônomos", exemplifica o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Maurício Torres, co-autor do estudo.

ZELADORES DA FLORESTA

Ao levantar as origens da comunidade - cem famílias de descendentes de colonos que lá chegaram durante o ciclo da borracha - por meio de registros de nascimento, relatos de viajantes e outros documentos, os pesquisadores revelaram uma história surpreendente.

Nas rústicas habitações ribeirinhas de Mangabal, ainda pode ser encontrado o que restou de móveis refinados e peças de porcelana inglesa. Uma população letrada transformou-se num povo integrado à floresta, reprodutor de um modo de vida semelhante ao indígena.

"Descobrimos que, num espaço de apenas três gerações, entre o fim do século 19 e início do 20, a comunidade tornou-se analfabeta, mas hoje dá lições de sustentabilidade aos que se consideram mais desenvolvidos", resume Torres.

O território embargado situa-se numa região de conflito, dentro de uma propriedade que o MPF identifica como a segunda maior área grilada do Pará.

A decisão judicial estabelece um precedente sem paralelo na história dos conflitos fundiários no Estado, que registra as piores estatísticas de violência no campo. Ameaça que paira sobre os moradores de Mangabal, que vêm sendo pressionados por grupos armados a deixar a região.

A população vive numa área de mais de 1 milhão de hectares espalhados por glebas descontínuas que formalmente pertence à empresa Indussolo. Segundo o procurador do MPF de Santarém Felipe Braga, a Indussolo, que há décadas atuava no setor madeireiro, tornou-se uma entidade fantasma.

De acordo com Braga, responsável pelo processo que deu origem à liminar e tem como objetivo derrubar o atual registro de posse, as propriedades fundiárias da Indussolo são fruto de um sofisticado esquema de grilagem.

'REGISTRO TORRENS'

O meio jurídico utilizado para garantir a grilagem é o "registro torrens", um instrumento legal do século 19, tornado obsoleto em 1916, a partir da introdução do registro de imóveis. Decisões judiciais polêmicas permitiram sua sobrevida até hoje.

A liminar do juiz Francisco de Assis não foi a primeira em favor da população de Mangabal. Em março, o juiz Fabiano Verli reconhecera o seu direito de permanecer na região. A liminar de Verli embasou-se num estudo, encomendado pelo MPF, que reúne provas da ocupação da área por antepassados dos atuais moradores desde meados do século 19.

O processo judicial que decidirá a posse das terras pleiteadas pela Indussolo levará anos para ser concluído. Mas a sobrevivência da comunidade de Mangabal e da floresta ao redor poderá ser assegurada em breve.

O Ibama acaba de enviar um especialista para avaliar a criação de uma reserva extrativista na região, iniciativa que conta com o apoio da comunidade.